A Mão de um Fantasma

No inverno de 2011, uma coisa não saía da cabeça de Jason: uma arma. Qualquer pistola serviria. Seria rápido e indolor. Uma bala no cérebro significaria o fim de todo o sofrimento; um alívio e uma paz que ele não sentia há anos. Os gritos de seu filho ecoavam distantes enquanto Jason contemplava essa ideia. Com as hospitalizações de Jayden se tornando frequentes, aquele pensamento – a silhueta de uma pistola contra a têmpora – se tornava cada vez mais tentador. No entanto, aqueles mesmos gritos que o levavam à loucura, o traziam de volta a si.

Precisava se concentrar. Não podia abandonar o filho. Em meio a uma das numerosas crises diárias de Jayden, de quem agora os gritos soavam nítidos e reais, Jason compreendeu que precisava de ajuda. Ligou para a mãe:

– É hoje, mãe, – ele tentava explicar, entre soluços, o que se passava – eu não consigo mais. Acabou, mãe. Acabou.

Sabendo exatamente do que se tratava, a avó de Jayden se viu implorando ao filho que fosse à igreja e se concentrasse em suas preces. Jason não havia largado a fé, continuara frequentando as mesmas igrejas, Shelter Cove e St. George, sempre que Jayden se encontrava estável. Em um domingo de missa, ele pediu por um sinal. Sabendo da situação em que Jason se encontrava, o pastor pediu para que todos orassem por Jason e Jayden, e intensificou suas preces pedindo a Deus que lhes mandasse um sinal:

– Não daqui a um mês, não daqui a uma semana. Jason precisa de um sinal hoje, Senhor, um sinal amanhã!

Jayden tinha apenas algumas semanas de vida.

 

O Dravet

Jayden nasceu com o gene SCN1A, imperceptível até sua primeira crise, aos quatro meses de idade. As primeiras convulsões eram do tipo grande mal, o que significa perda de coordenação motora e fortes contrações musculares, visíveis mesmo que aconteçam por debaixo da roupa. Aos dois anos de idade, ele passou a ter também convulsões clônicas, causando movimentos involuntários. Seis meses depois, Jayden tinha todos os tipos de convulsões existentes. As crises aconteciam diariamente e quase o dia todo. Os pais o levavam de um médico a outro, tentando descobrir o que ele tinha, sem sucesso.

Um teste genético finalmente concluiu o diagnóstico: Síndrome de Dravet, a forma mais severa de epilepsia conhecida. A síndrome costuma se manifestar em crianças antes de elas completarem um ano de idade. Não existe cura e os tratamentos podem ou não ajudar a diminuir as crises. Como a Síndrome de Dravet é uma doença rara – a cada 30 mil crianças, aproximadamente, uma nasce com o gene – não há muito investimento por parte da indústria farmacêutica em pesquisa, já que o retorno financeiro não compensaria os gastos. Os tratamentos disponíveis, portanto, funcionam na base da tentativa e erro.

Após o diagnóstico, que já é difícil de se obter (foram quase dois anos de testes e consultas no caso de Jayden), a busca pelo tratamento certo se torna uma corrida contra o tempo. A cada crise a criança se aproxima mais rapidamente da morte, já que as convulsões causam danos cerebrais irreparáveis. Jayden teve paradas cardíacas em algumas de suas crises e precisou ser ressuscitado no hospital. Fazer ressuscitação cardiopulmonar em Jayden enquanto espera pela ambulância não era bem a ideia de Jason para um programa pai e filho. A doença não só paralisa a vida da criança, ela devasta a família. Não é à toa que muitos pais não aguentam a pressão e acabam se divorciando. O que também foi o caso de Jason e sua mulher.

Aos quatro anos de idade, Jayden já tinha experimentado todos os tratamentos disponíveis no mercado. Jason já havia procurado tratamentos naturais, dietas, quiropratas, mas nada parecia funcionar. Jayden tomava 22 pílulas diárias, remédios que acabaram por debilitá-lo ainda mais. Uma das pílulas, o clobazam, remédio comumente usado para a síndrome de Dravet e outras formas de epilepsia, tem como possíveis efeitos colaterais: problemas na visão, tontura, perda de coordenação muscular, sonolência, nervosismo, pensamento anormal, agitação, ansiedade, mudanças de comportamento, confusão, convulsões (!), depressão, batimento cardíaco irregular, alucinações, falta de memória… e essa não é nem metade da lista.

Os remédios impediam Jayden de dormir, comer e o garoto chorava durante horas por medo das alucinações, entre outros efeitos desagradáveis. Aos quatro anos e meio de idade, Jayden não falava, não andava, não mastigava. Tudo o que ele fazia era chorar e gritar. As convulsões só haviam aumentado e ele tinha até 500 contrações musculares severas por dia. Jason saía correndo da loja de joias onde trabalhava como gerente quase todos os dias, pois seu filho se encontrava em uma ambulância.

Dois dias depois de ir à missa pedindo por um milagre, o primeiro sinal apareceu. Ele caminhava para o trabalho quando recebeu uma ligação da loja, dizendo que o chefe lhe concedera quatro meses de folga. Os outros funcionários haviam mandado uma carta ao dono da loja pedindo para que Jason pudesse ficar mais tempo com seu filho e se concentrar somente nisso. O pedido fora concedido.

O segundo sinal não demorou a aparecer. Um adolescente de 15 anos havia sido pego fumando um baseado na escola e estava suspenso. O noticiário local resolveu aproveitar o gancho para fazer uma matéria sobre drogas na escola. No entanto, na entrevista, uma revelação: o menino afirmava que fumava maconha para controlar suas convulsões. Os pais não sabiam dizer se ele estava dizendo a verdade.

Essa reportagem ficou martelando na cabeça de Jason e ele resolveu pesquisar mais a fundo. Acabou descobrindo que a maconha tem canabinoides anticonvulsivos e antiespasmódicos. Também acabou conhecendo o CBD (cannabidiol), componente da cannabis que é neuroprotetor e antioxidante, justamente o que poderia ajudar e proteger Jayden. Ficou surpreso, ainda, ao descobrir que o governo dos Estados Unidos aprovou a patente de número 6630507, sobre o uso de canabinoides como o CBD para efeito de neuroproteção e antioxidante. No entanto, o governo americano mantém a canábis na primeira categoria de drogas perigosas restritas, junto com a heroína e o LSD. As substâncias dessa categoria são consideradas extremamente perigosas, com alto potencial de abuso e nenhum valor medicinal aceito. Alguma coisa não estava fazendo sentido.

Ele tinha uma consulta médica em São Francisco e resolveu perguntar ao médico o que ele achava disso tudo. O conselho foi de tal flexibilidade que renovou as esperanças de Jason:

– É uma questão de vida ou morte agora, não custa tentar.

Convencer a família não seria tão fácil. Após obter o óleo de canábis em um conta-gotas de 3 gramas, Jason demorou duas semanas para tomar coragem. A mãe dizia:

– Você vai matar o seu filho! Dar maconha a uma criança no estado dele? Está louco?

De qualquer maneira, Jayden estava morrendo e Jason não tinha nada a perder. Quando finalmente colocou as três gotinhas debaixo da língua de Jayden, Jason passou, pela primeira vez, um dia inteiro com seu filho sem que ele tivesse uma crise. Passaram-se mais quatro dias sem nenhuma convulsão. Para Jason, era um milagre.

 

Uma revolução

O suposto milagre faz parte de nossa história há milhares de anos. O neurologista Ethan Russo, especialista em canabinoides, menciona em “Clinical Cannabis in Ancient Mesopotamia: A Historical Survey with Supporting Scientific Evidence” que os antigos mesopotâmios já usavam, desde o início da civilização, “um unguento tópico usado no tratamento de um mal antigo chamado Mão de Fantasma, que atualmente acredita-se que seja a epilepsia, incluindo a cannabis como um de seus principais ingredientes” (Russo apud Bennet, 2010, p.20).

Já no século XIX, o cirurgião da companhia das Índias, William B. O`Shaughnessy, recolheu informações sobre o uso medicinal da canábis pelos indianos e chineses. Segundo Chris Conrad, no livro “Hemp: O uso medicinal e nutricional da maconha” (1997), “O`Shaughnessy estabeleceu sua reputação ao aliviar a dor do reumatismo e aplacar sucessivamente as convulsões de uma criança com essa nova e estranha droga. Eventualmente ele popularizou seu uso na volta à Inglaterra. Seu êxito mais conhecido veio quando ele abrandou os dolorosos espasmos musculares do tétano e da raiva com a resina”.

Se todas essas informações, entre outros usos terapêuticos da canábis em seus mais de cinco mil anos de história conhecida já estavam por aí, por que Jason, em 2011, foi o primeiro a tentar esse tratamento com a Síndrome de Dravet? Jason se fez essa mesma pergunta centenas de vezes.

A princípio, quando iniciou o tratamento de Jayden, não poderia estar mais feliz com os resultados.

– Era o paraíso, sabe? Todos os dias em que Jayden está bem é como um paraíso.

Aos poucos, foi tirando Jayden dos medicamentos tradicionais, e os resultados foram ainda melhores:

– Eu tirei o stiripentol e ele parou de gritar; eu tirei o topomax, ele tomava 10 pílulas de topomax por dia, ele começou a mastigar e a correr. Ele não andava antes e ele começou a correr depois disso! Depois eu tirei o depakote e ele começou a compreender. Então eu tirei um pouco do clobazam, estamos nos últimos miligramas de clobazam, mas é muito difícil tirar dele. Ele sofreu muito com as crises de abstinência.

As crises de abstinência são comuns em remédios tarja-preta, pois eles causam dependência física. Jason foi removendo aos poucos, nos últimos anos, cada um dos medicamentos. Ele diz estar começando a conhecer Jayden pela primeira vez.

– Está me custando 22 pílulas para descobrir quem meu filho realmente é. Mal posso esperar para conhecê-lo de verdade.

Jason conseguira salvar a vida do filho e queria que outros pais soubessem sobre sua descoberta. No entanto, quando buscou mais informações e percebeu que a sua descoberta não era assim tão inédita, mas que poucos sabiam sobre ela, pensou em todas as famílias, todas as crianças que perderam suas vidas devagar, sofrendo, e ficou muito decepcionado.

Tentar passar a informação adiante também não foi nada fácil:

– Todos os pais que estão agora lutando em todos os estados eram contra mim no início – afirma ele, referindo-se aos pais que estão tentando conseguir acesso à canábis medicinal em estados americanos onde ela ainda é ilegal – Eu era expulso de todos os grupos de pacientes, todas as reuniões de Dravet, eles achavam que eu era um louco. Agora todos eles são grandes defensores da maconha medicinal.

Jason não recebeu pedidos de desculpas, mas ficou feliz com o resultado. Da pequena cidade de Modesto, na Califórnia, ele iniciara uma revolução que atingiria proporções mundiais. Desde que começou o tratamento de Jayden, diversas famílias têm feito o mesmo. Paige Figi, que salvou a vida da filha, Charlotte, com uma planta de canábis com alto teor de CBD, descobriu através de Jason o que fazer. A CNN tornou o caso de Charlotte famoso e o conhecimento sobre o uso pediátrico da canábis foi se espalhando pelo mundo até chegar aos ouvidos atentos de Maria Aparecida Felício de Carvalho.

 

**Essa história não termina aqui e faz parte do livro “Ervas Daninhas”. Postarei mais em breve!**

Para mais informações sobre a maconha medicinal, adquira o livro “O Uso Medicinal da Canábis“.

Where do you see yourself in five years?

I heard this question in several job interviews and I always hated it. I never understood if the purpose was to check how ambitious I was or to know if I was going to ditch the job any time soon. Five years is a long time and I didn`t want to have my life planned so far ahead. So I lied a lot on job interviews.

This seems to be a common thing in lectures and books about achieving success. The general idea is that you set up goals for yourself and if in five years you have achieved them, you`re winning the game of life, man! Congrats!

That`s fine to help you focus and everything, but how boring is that? Doing exactly what you thought you`d do five whole years ago; you are that predictable.

Five-years-ago Susan, at the age of 22 and starting to study journalism, would never, ever have guessed that by 28 she`d be a divorced single mother, published author, living in the UK and working at a nursery, while trying to help children on another continent to get cannabis*. That would have been a crazy thought I`d have probably left out at a job interview. Past Susan didn`t even know Newport Pagnell, the city present Susan lives, existed. And if past Susan had been offered the opportunity to live in this small town on the outskirts of Milton Keynes, she would have said: “no, thank you”.

If you don`t know Newport Pagnell, it`s because you don`t live in the immediate five-mile radio. I ended up here because of my ex-husband but, as you probably figured, we split up. So now I feel a bit out of context. There are very few opportunities for reporters in the area, especially foreign ones with experience on writing about weed. And for someone who lived her entire life in one of the largest cities in the world, Newport Pagnell is pretty much like groundhog day loop. But I`m getting used to it; it`s all a matter of adaptation.

There`s something I learned from Taoism and tattooed on my leg so I wouldn`t forget: be like water. Water is flexible and patient, it blends to the environment. It might at times be stuck on a puddle, but it`ll eventually evaporate and travel again. It won`t be stopped, it will keep moving forward. Water has the power of overcoming all sorts of obstacles, given enough time. So give me time, I`m on my puddle.

The puddle is not necessarily a bad thing either. Newport Pagnell has its charm and I love to learn about its long history. I`ll write more about it another time.

The point is: I found myself a single mother, the government denied me some benefits because I hadn`t lived in the UK long enough, so I figured I`d have to work even though I had a baby and was still breastfeeding. It had to be part-time, local and something I would enjoy. Since the jobs 2016 224I went to college for were not available here I asked myself what I`d like to do, what I`d like to work with, and the answer was right in front of me – more like in my arms, probably crying or poking my eye. Children!

I have experience with kids so I knew what to expect. I might have said at some point in the past I`d never work with children again. But the whole point of this post is that things change, they keep changing. After I`ve had my share of disgusting adults I began to miss the innocent little creatures. Plus: I became a mother, which makes my brain be filled with love-for-children hormones.

So I got a job at the local nursery and I`m enjoying it a lot. Childcare for my son is provided there, so I`m never too far from him; the company is very nice and wants to help me get more qualifications; and I`m now thinking of doing a masters on Childhood and Youth, maybe start writing about it in the future. Things are coming together in ways I would have never expected.

If I had set up strict goals and tried to stick to them no matter what, I might have failed miserably or have been very successful, I`ll never know. I just know things would definitely be different now and that`s a thought that keeps me awake at night sometimes. I know it`s a silly thing to think about, but it`s hard to avoid. Things happened as they did and I chose to adapt, to be flexible, to get comfortable in my puddle instead of hating past Susan`s life choices. I have no idea where five-years-from-now Susan will be; I don`t really want to know. I set my goals weekly, anything beyond that is an exciting mystery.

 

PS: There`s nothing wrong with setting long term goals, I just think it`s a good idea to be prepared to abandon them when they no longer make sense, or adapt them when life takes you to a different direction.

 

*Just so there`s no misunderstanding, there`s a context here. I support groups of parents in Brazil who fighting for access to cannabis based medicine for their children, mostly with hard-to-treat epilepsy.

O perigo da fosfoetanolamina sintética

Nos próximos parágrafo eu explicarei o meu posicionamento em relação à tal da fosfoetanolamina sintética e o comportamento do criador da substância, o químico Gilberto Chierice, e os médicos envolvidos no caso. Para deixar bem claro, eu preciso explicar algumas coisas sobre estudos científicos, sobretudo em novas drogas. São informações que, na minha opinião, deveriam fazer parte do currículo escolar do ensino básico. Seria ótimo se, na primeira aula de ciências, as crianças recebessem a declaração do professor: “Vamos começar aprendendo como se faz ciência”; e a partir daí passasse as explicações a seguir – de maneira mais lúdica, claro. Os exemplos que usarei servem para ilustrar melhor as explicações e não são casos isolados; existem milhares de exemplos, mas não dá para enumerar todos eles. Vamos lá!

Caso não tenha acompanhado o desenvolvimento dessa história, aqui vai um link de uma das notícias para você se inteirar:

http://epoca.globo.com/vida/noticia/2015/10/fosfoetanolamina-sintetica-oferta-de-um-milagre-contra-o-cancer.html

Testando uma hipótese

Novas descobertas científicas costumam começar com uma hipótese (com exceção daquelas que ocorrem por acaso, como quando se procura uma coisa e encontra outra). Essa hipótese costuma ser baseada em uma teoria, uma observação do mundo real, casos anedóticos (vamos falar mais sobre eles), etc. Digamos então, que eu tenha desenvolvido a hipótese de que a fosfoetanolamina sintética cura o câncer. E eu cheguei a essa conclusão pela observação da fosfoetanolamina orgânica, gerada pelo próprio corpo humano, que atua na defesa do organismo contra o câncer. Então, se eu colocar mais dessa substância no meu corpo, haverá mais atuação contra o câncer; isso é lógico, faz muito sentido. No entanto, é uma teoria, e eu preciso testar essa teoria para provar que a minha hipótese está correta.

Antes de continuarmos eu preciso dar um exemplo de que nem sempre o que parece absolutamente lógico está correto. Nos anos 1980, médicos passaram a prescrever antiarrítmicos para pessoas que tinham ataques cardíacos. Fazia muito sentido, já que pessoas que acabaram de sofrer ataques cardíacos tendem a ter arritmia. Como pacientes com problemas cardíacos têm uma mortalidade muito alta, demorou muito tempo para que os médicos percebessem que isso, na verdade, aumentava as chances de o paciente falecer. Calcula-se que mais de 100 mil pessoas morreram por causa desse erro.

Comecemos, então,2015_10_14_Fosfoetanolamina_usp pelo laboratório. Então eu coloco essa substância junto com células do câncer em um pratinho e vejo como elas interagem. Se o resultado for positivo, vamos para a próxima fase. Eu estou resumindo essa parte, o ideal seria testar essa substância com diferentes células cancerosas, em dosagens diversas e ir anotando todos os resultados. Aí eu publico os resultados, outros cientistas vão ler meu estudo e dar seu parecer. Isso se chama peer review e é muito importante para um estudo. Muitas vezes o cientista cometeu um erro no design do estudo ou deixou de anotar um dado importante; não por incompetência, isso é comum. Realizar estudos científicos não é nada fácil. Outros cientistas podem também tentar realizar os mesmos estudos para ver se os meus resultados podem ser replicados. Dando tudo certo, a gente continua a pesquisa.

Agora podemos usar ratos de laboratório, com modelos animais de doenças humanas. Eu posso, por exemplo, injetar células de câncer humano em 30 ratos. Eu dou fosfoetanolamina sintética para 15 ratos e placebo para os outros 15, e vejo o que acontece. Nesse ponto, no estudo que os médicos realmente fizeram em ratos, foi utilizado um câncer de rato, e não um câncer humano. O estudo durou 28 dias e apresentou resultados positivos. Podemos testar em humanos agora? Não! Agora a gente faz um monte de outros testes em animais, utilizando modelos diferentes de câncer, diferentes animais, diferentes dosagens de fos e mais um monte de variantes, inclusive o tempo de tratamento.

Então, o que esse Dr. Menenguelo está dizendo no vídeo abaixo, como se estivesse tudo pronto para o uso da fos por humanos é balela.

https://www.youtube.com/watch?v=2QxcD0KNUUQ

Depois que todos esses testes forem efetuados em animais, e forem publicados, revisados (peer review), replicados e continuarem dando certo, aí a gente passa para os testes em humanos. E nós não chegamos aí ainda com a fosfoetanolamina sintética. Mas, digamos que tenhamos feito isso tudo e estamos animadíssimos para testar em humanos. A gente começa com grupos pequenos de pessoas, para ver se a droga é segura antes de testar em um grupo grande.

Lembrando que todas as fases do estudo precisam ser aprovadas por um comitê de ética, que é especialmente rígido antes de aprovar testes em seres humanos. Um exemplo ajuda a entender porque essa fase precisa ser extremamente cuidadosa.

“Em março de 2006, seis voluntários chegaram no hospital de Londres para participar de um estudo. (…) Dentro de uma hora, esses seis homens desenvolveram dores de cabeça, dores musculares e mal-estar. As coisas então pioraram: temperaturas altas, agitações, períodos em que se esqueciam quem eram. Logo estavam tremendo, pálidos, seus pulsos acelerados, a pressão sanguínea caindo. Então, um queda: um deles entrou em parada respiratória, os níveis de oxigênio no sangue caindo rapidamente e fluídos enchendo seus pulmões. Ninguém sabia porquê. Outro teve queda na pressão sanguínea para apenas 65/40, parou de respirar direito e foi levado rapidamente à unidade de tratamento intensivo, desacordado, entubado e mecanicamente ventilado. Dentro de um dia, todos os seis estavam desastrosamente mal: fluído nos pulmões, dificuldade para respirar, rins falhando, sangue coagulando sem controle pelo corpo todo, e as plaquetas desaparecendo do sangue. Os médicos deram tudo que podiam a eles: esteroides, anti-histamínicos, bloqueadores de receptores do sistema imunológico. Eles pararam de produzir urina e foram colocados em diálise; seu sangue foi substituído, primeiro devagar, depois rapidamente; eles precisavam de plasma, células vermelhas, plaquetas. A febre continuava. Um deles desenvolveu pneumonia. O sangue deixou de alcançar os membros periféricos. Seus dedos se tornaram pálidos, depois marrons, depois pretos, e começaram a apodrecer e morrer. Com esforço heroico, todos escaparam, pelo menos, com suas vidas.” *

Essa é a descrição de um teste clínico que deu muito errado, com uma droga experimental chamada TGN1412. Esse pode parecer um caso extremo, mas imagina se essa droga tivesse sido distribuída para a população indiscriminadamente como Chierice fez com a fosfoetanolamina. Ou mesmo se pulassem etapas do estudo e dessem a droga para um grande número de pessoas de uma vez, como pretendem fazer agora (destinaram nada menos que 10 milhões de reais para a realização de um estudo com até mil pacientes). É por isso que existem regulamentações desses estudos e fases específicas que precisam ser cuidadosamente seguidas.

Estudos em humanos

Os estudos clínicos em humanos costumam ocorrer da seguinte forma: digamos que eu reúna 200 pacientes (200 é uma boa representação estatística do infinito, com 95% de certeza e uma margem de erro de 7%), divido então esses pacientes em dois grupos, um que vai receber o medicamento, e um que vai receber o placebo. Nem os pacientes, nem os médicos aplicando o tratamento sabem quem está recebendo o medicamento e quem está recebendo o placebo, e ISSO É MUITO IMPORTANTE (vou explicar mais adiante). O medicamento vai se demonstrar eficaz se os pacientes no grupo do medicamento melhorarem mais do que os do grupo com placebo (também chamado de grupo de controle).

Essa comparação com o grupo de controle é importante porque, em muitos casos, pacientes melhoram sozinhos. Milagres acontecem e estão por toda parte na literatura médica, então precisamos controlar o estudo para ter certeza que é o medicamento funcionando. O efeito placebo também é importante nessa questão, pois já foi demonstrado em estudos clínicos que o placebo é mais eficaz que nada (explico mais a seguir). Por óbvias questões éticas, quando já existe um tratamento eficaz para a doença que queremos tratar com o medicamento novo, o placebo não é utilizado. No lugar dele, o grupo de controle recebe o melhor tratamento disponível no mercado. O medicamento novo que está sendo testado, portanto, precisa ser melhor ou igual ao medicamento já disponível, ou apresentar menos efeitos colaterais.

 

O placebo

Uma das polêmicas com a fosfoetanolamina é o fato de haverem pacientes dando relatos de melhora no câncer após usar o medicamento. Muitas pessoas, inclusive jornalistas, consideram esses casos a prova de que o medicamento funciona. Essa conclusão é irresponsável, pois CASOS ANEDÓTICOS NÃO PODEM SER CONSIDERADOS PROVA DE EFICÁCIO OU SEGURANÇA DE UM TRATAMENTO. O efeito placebo é um fenômeno interessante para explicar essa situação. Existem relatos de médicos de guerra que aplicaram soluções salinas com o rótulo da morfina (que havia acabado) antes de realizar cirurgias, e os pacientes resistiram à dor.

Caso você não esteja familiarizado com o amigo placebo, se trata de um remédio “de mentirinha”, que costuma vir na forma de uma pílula de açúcar ou uma injeção de soro. No entanto, existe todo o tipo de ritual, até cirurgia placebo, na qual o médico abre o paciente e finge que está fazendo alguma coisa (por incrível que pareça, funciona!). Porém, não é ético realizar estudos dividindo grupos de pacientes com placebo e um grupo sem tratamento, pois não é legal deixar pessoas doentes sem tratamento (apesar de que já foram feitos estudos tenebrosos em momentos menos regulados da história farmacêutica). Então como sabemos que o placebo funciona?

Estudos comparando um placebo com outro fizeram descobertas bem interessantes, como as que eu selecionei a seguir:

– Duas pílulas de açúcar são mais eficazes do que uma pílula de açúcar;

– Uma injeção salina é mais eficaz do que uma pílula de açúcar;

– A cor da pílula influencia a eficácia dela (pílulas roxas, por exemplo, são mais eficazes contra a ansiedade do que pílulas vermelhas);

– A linguagem corporal do médico oferecendo o tratamento influencia no resultado.

Esse último dado indica porque é importante que o médico não saiba, em um estudo clínico, se está dando o placebo ou o medicamento verdadeiro ao paciente. Em um estudo realizado por Gryll e Katahn (1978), foram oferecidas pílulas de açúcar para pacientes que receberiam uma injeção odontológica. Esses pacientes foram divididos em dois grupos. Um grupo receberia a pílula de um médico extremamente confiante, dizendo que se tratava de um remédio muito eficiente. O segundo grupo receberia a pílula de um médico menos sorridente, dizendo que era um medicamento novo e que ele não acreditava ser lá essas coisas. Adivinha qual grupo apresentou menos dor: o primeiro; e a diferença não foi pouca.

Estudos subsequentes indicaram que, ainda que não digam nada sobre o medicamento, os maneirismos, expressões faciais e o entusiasmo do médico podem afetar o resultado do estudo. Se detalhes como esses podem determinar a eficácia de um tratamento, o que dizer de Chierice, fornecendo pílulas a pacientes afirmando com certeza absoluta que é a cura do câncer, e até sugerindo que as pessoas larguem outros tipos de tratamento, como a quimioterapia. O vídeo a seguir é uma entrevista com Chierice, mostrando toda sua confiança no tratamento.

https://www.youtube.com/watch?v=0lcyyHiQlHk

É preciso muito cuidado, portanto, quando usamos casos específicos de pessoas que afirmam ter se curado com a fosfoetanolamina sintética. Nós não sabemos se elas foram curadas por qualquer outro tratamento, por placebo ou qualquer outra coisa que elas tenham feito, pois não houve um acompanhamento desses casos em um estudo clínico bem estruturado.

 

Anedotas

O meu objetivo não é desprezar os casos de pacientes que obtiveram melhora. Eu fico muito feliz por eles. De fato, os pacientes que fizeram uso da fosfoetanolamina sintética não estão errados. Para quem precisa curar uma doença mortal, tudo é válido. No entanto, isso não justifica o desvio de conduta dos médicos e cientistas envolvidos na distribuição ilegal de medicamentos não testados.

Os casos anedóticos costumam ser a primeira evidência de um possível tratamento. Eles podem ser observados para a elaboração de uma hipótese, por exemplo. Portanto, casos e histórias não são totalmente dispensáveis; de fato, eles são úteis. No entanto, conforme mencionado anteriormente, anedotas não servem como prova de que um tratamento funciona.

O estudo a seguir, por exemplo, analisa o índice de sobrevivência de mulheres com câncer de mama entre as que foram tratadas e as que recusaram tratamento. Depois de dez anos, 72% das mulheres tratadas sobreviveram, e 36% das mulheres não tratadas sobreviveram. Isso significa que fazer o tratamento dobra as chances de sobrevivência do paciente.

http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1357734/

O que aconteceria, no entanto, se em vez de realizar esse estudo, conversássemos apenas com as mulheres que sobreviveram sem tratamento? Teríamos a impressão de que o tratamento não faria diferença, de que os pacientes sobrevivem mesmo sem fazer nada. Esse seria um ponto de vista distorcido da realidade e, portanto, não podemos aceita-lo como verdadeiro e desencorajar pacientes a realizar tratamento contra o câncer. Isso seria irresponsável e perigoso.

O mesmo acontece quando conversamos com os pacientes que sobreviveram usando a fosfoetalonamina sintética, como se tem feito repetidamente na mídia convencional. Como não houve acompanhamento dos pacientes, não sabemos nada sobre aqueles que usaram o tratamento e não se curaram, ou até morreram. Não sabemos que efeitos colaterais poderiam ter sido observados ou quantos pacientes desistiram do tratamento com a fosfoetanolamina por ela não estar funcionando ou causar algum outro problema de saúde (detalhes que costumam ser observados em estudos clínicos e bem documentados).

Ainda assim, políticos estão ordenando a fabricação e distribuição do medicamento sem qualquer evidência científica de sua eficácia e segurança, se focando somente em casos específicos de pessoas que melhoraram.

 

A mídia e a prática da medicina

De repente, todo mundo virou médico. Não apenas o químico que sintetizou a fosfoetanolamina sintética, mas os jornalistas que estão acompanhando o caso, os políticos que liberam a distribuição da substância ou fornecem fundos para que os estudos aconteçam e, é claro, a população toda que acredita que exista prova da eficácia da tal da pílula. Aqueles que tentam colocar algum senso de lógica nessa história toda se tornaram fascistas, vendidos à indústria farmacêutica.

Eu me surpreendi ao descobrir que a indústria farmacêutica, apesar de frequentemente mencionada por aqueles que defendem a fosfoetanolamina, não tem nada a ver com a história. A indústria costuma estar por trás dessas ondas de sensacionalismo em cima de drogas não testadas. Um exemplo clássico é o caso da droga Herceptin, da Roche, com uma história muito parecida com a da fosfoetanolamina, que aconteceu em 2007.

O objetivo da Roche era conseguir licença de marketing para que a droga fosse prescrita nos estágios iniciais de câncer de mama. O que se seguiu foi um bizarro (mas não incomum) fenômeno midiático no Reino Unido. A droga “tem efeito muito modesto na sobrevivência em alguns casos de câncer de mama, com o custo de efeitos colaterais como problemas cardíacos sérios” *, afirma Bem Goldacre no livro “Bad Pharma”. O relato da médica Jane Keidan, que sofria de câncer de mama, ajuda a compreender quão distorcida era a imagem transmitida pela mídia sobre a droga:

“Eu comecei a sentir que, se eu não recebesse essa droga, eu teria poucas chances de sobreviver ao meu câncer. (…) Uma análise mais cuidadosa do ‘benefício de 50 por cento’ que estava sendo largamente citado na imprensa médica e não médica, e fixado na minha mente, na verdade se traduzia em 4-5 por cento de benefício para mim, o que se equilibrava ao risco cardíaco… Essa história ilustra como até mesmo uma mulher com treinamento médico e normalmente racional se torna vulnerável ao ser diagnosticada com uma doença potencialmente fatal”.

Cientistas reuniram todos os 361 artigos que mencionavam a Herceptin. A cada cinco artigos, quatro eram positivos, um neutro, nenhum negativo. Efeitos colaterais eram mencionados em menos de um a cada dez artigos. Alguns mencionavam o termo “droga milagrosa”, afirmando não haver qualquer efeito colateral.

Tudo isso ocorreu antes de qualquer evidência sobre a eficácia da droga ser fornecida ao ministério da saúde. Assim que a droga conquista as mentes e os corações da população e meche com a esperança de pacientes e familiares, há uma pressão muito grande para que ela seja aprovada.

Apesar de não haver, até onde sabemos, uma indústria por trás da fosfoetanolamina sintética, o fenômeno é o mesmo. Câncer é uma das doenças que mais aflige o ocidente; todo mundo conhece alguém que tem, teve ou morreu de câncer. É um assunto que dá audiência e comove a população e, portanto, se torna o assunto favorito das colunas de saúde… e todas as outras editorias. Parece haver um sentimento de heroísmo por parte dos jornalistas ao tocar no assunto e, portanto, não é necessária uma equipe de RP fornecendo dados distorcidos à mídia de massa.

De repente, todo mundo decide praticar medicina sem licença e sente que Chierice também merece esse direito, saindo não só ileso, mas louvado por seus crimes.

 

O perigo

O grande perigo agora, depois de tanto sensacionalismo em cima de uma substância em estágios iniciais de estudo, está na pressão que foi formada para que esses estudos sejam concluídos o mais rápido possível, com resultados positivos.

http://epoca.globo.com/vida/noticia/2015/11/eu-nao-gastaria-r-100-mil-nessa-pesquisa-da-fosfoetanolamina-diz-medico.html

Foram destinados dez milhões de reais para a pesquisa da fosfoetanolamina, apesar dos cortes de 1,8 bilhão de reais destinados à ciência e tecnologia no Brasil e de existirem diferentes pesquisas mais avançadas em andamento. Isso tira foco e verba de pesquisas mais promissoras.

Para que você tenha uma ideia (e eu adoro dar esse exemplo) existe mais evidência de que a maconha cure o câncer do que a fos. Na verdade, existe mais evidência de que a prática de yoga, meditação, mudança de dieta e até acupuntura ajudem no tratamento de câncer com mais eficiência que a fos. E isso não quer dizer que qualquer uma dessas coisas curem o câncer.

Então existe agora uma pressão política para que a fosfoetanolamina sintética apresente resultados positivos na pesquisa. Pesquisas financiadas pela indústria farmacêutica, por exemplo – onde há pressão financeira para que os resultados sejam favoráveis, – têm 3,6 vezes mais chances de apresentarem resultados positivos, em comparação com estudos independentes.

Essas distorções podem acontecer de diversas formas, seguem alguns exemplos (não vou entrar em detalhes no momento):

– interrompendo o estudo no momento em que a maior parte dos pacientes, por acaso, estiver tendo resultados positivos;

– selecionando pacientes com maior probabilidade de melhora;

– escrevendo um texto com conotação positiva para mascarar um resultado negativo (por exemplo: 2% dos pacientes no placebo melhoram, e 4% dos pacientes tomando o medicamento melhoram. É muito pouco, uma melhora quase insignificativa, mas eu posso escrever que houve o dobro de melhora, pois 4% é o dobro de 2%);

– ignorando efeitos colaterais (por incrível que pareça, isso acontece);

– entre outros truques que ocorrem diariamente na indústria dos estudos clínicos (mas isso merece um artigo a parte).

 

O fenômeno da fosfoetanolamina sintética não é algo novo, a história vive se repetindo. Eu espero que esse artigo ajude a compreender o problema e a identificar futuras situações similares. Eu espero mesmo é que a fos se prove uma droga eficiente na luta contra o câncer, com poucos efeitos colaterais (pelo bem dos pacientes voluntários nos estudos); e que nenhum desses estudos seja distorcido. Isso me faria muito feliz. No entanto, como essas ondas de sensacionalismo costumam ir e vir o tempo todo – e as pessoas se esquecem delas rapidamente – sem, no final, apresentarem um resultado muito animador, eu estou pouco otimista. O importante agora é sempre desconfiar de promessas boas demais, e procurar saber o máximo possível sobre o assunto antes de se juntar à multidão.

* Todas as referências diretas foram retiradas dos livros “Bad Science” e “Bad Pharma”, de Ben Goldacre. Para referênicas mais detalhadas, favor entrar em contato.

A corrida milionária pelo mercado do CBD

As recentes resoluções do CFM (Conselho Federal de Medicina), de apoiar o uso compassivo do CBD, e da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), de reclassificar o CBD como uma substância que possa ser prescrita por médicos indicam pouco avanço na luta pelo direto de usar a canábis medicinalmente. As mesmas decisões, entretanto, significam um grande sinal verde para empresas interessadas em explorar o mercado do canabidiol, e a indústria já tem se movimentado. Enquanto alguns pacientes declaram que os extratos industrializados de CBD fazem maravilhas, outros reclamam do preço abusivo e até duvidam da qualidade desses produtos. Será esse o caminho mais seguro a ser seguido? Será o favorecimento da indústria um mal necessário? Ou estaremos colocando pacientes em uma situação ainda mais complexa?

Se você está de alguma forma envolvido com o movimento pelo uso do CBD medicinal, já deve ter ouvido falar em empresas com os nomes: HempMeds, Dixie, Medical Marijuana Inc., KannaWay, KannaVest, KannaLife, etc. Essas empresas se especializaram em vender “hemp oil”, ou “óleo de cânhamo”, que segundo o rótulo é rico em CBD e contém uma quantidade insignificante de THC, inferior a 0,3%. Na verdade, todas essas empresas são dirigidas pelo mesmo grupo de pessoas, uma combinação interessante entre traficantes e pessoas sendo investigadas por diferentes tipos de fraude. Essas empresas fingem se associar e comprar ações umas das outras para que sejam valorizadas e consigam investidores. O mais interessante é que essas empresas funcionam de um sistema de pirâmide, que vende mais para seus colaboradores do que para o público externo, e funcionam à margem da legalidade nos Estados Unidos.

Uma pesquisa elaborada pela associação Project CBD, nos Estados Unidos, trouxe à tona sórdidas revelações sobre o funcionamento dessas empresas, que chegam ao Brasil através da HempMeds Brasil. Como a HempMeds não tem autorização para vender medicamentos, os óleos de cânhamo que produzem são vendidos como suplementos alimentares, mas a empresa faz uso de “buzz marketing” para fazer uma publicidade focada em pacientes que precisam do CBD, sobretudo crianças. Funciona da seguinte maneira: os representantes da HempMeds oferecem o caro RSHO (Real Scientific Hemp Oil) de graça para pais de crianças com epilepsia refratária, com a condição de que eles contem para outros pais os benefícios do produto, postem vídeos sobre o tratamento de seus filhos e passem a palavra adiante. Como 10 gramas do produto chegam a custar 599 dólares, sem contar as taxas e impostos da importação, muitos pais ficam felizes com o acordo, sobretudo se o remédio tem ajudado seus filhos. A empresa, portanto, consegue uma propaganda com relativamente nenhum custo para empresa, para vender um produto para fins que ela não tem autorização (ou controle de qualidade), usando pais e pacientes desesperados. A prescrição desses produtos importados foi apoiada pela CREMESP (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) e pela CFM.

Existe um problema fundamental na produção do óleo de cânhamo: o cânhamo não é a melhor fonte de CBD. Trata-se de uma variedade da canábis comumente utilizada na fabricação de fibra vegetal, para a produção de tecidos, combustível, óleo de motor, mobília, etc. O cânhamo possui uma concentração mais baixa de canabinoides e, portanto, é necessária uma grande quantidade de planta para produzir algumas gramas de óleo. O cânhamo também tem a propriedade de absorver toxinas e metais do solo e, portanto, se for utilizado para consumo, deve ser plantado em solo orgânico, sem adição de pesticidas. Não se sabe ao certo de onde vem o cânhamo utilizado nos produtos da HempMeds; há rumores de que seja importado da China ou da Romênia. Grandes plantações de cânhamo, especialmente voltada para a produção de fibra, não tomariam precauções como utilização de solo orgânico, fertilizantes naturais e a não utilização de pesticidas, por uma questão de praticidade e custo. Dessa forma, há uma preocupação sobre a qualidade e a segurança do RSHO. Há relatos de crianças e adultos que tiveram fortes cólicas abdominais após consumir o óleo, que teve algumas amostras analisadas como contendo quantidades altas de metais pesados e hexano, um solvente industrial tóxico.

Apesar do duvidoso funcionamento das empresas produtoras de óleo de cânhamo, que tem sido erroneamente chamado no Brasil de óleo de CBD, o governo americano concedeu à KannaLife, em 2012, uma patente de número 6630507, que lhes assegura direitos exclusivos sobre a produção de medicamentos à base de canabinoides. Trata-se de uma licença exclusiva para a empresa desenvolver drogas para o tratamento de encefalopatia hepática (danos cerebrais causados por doenças do fígado).

Diversos pesquisadores, sobretudo médicos como Paul Armentano e Sanjay Gupta, defendem que a melhor fonte de CBD são as variedades de canábis ricas em canabidiol, como a Charlotte`s Web, a Harletsu e a Avidekel. Primeiro porque os efeitos do CBD são potencializados pelo THC, ainda que em quantidades baixas – a Charlotte`s Web, por exemplo, possui menos de 1% de THC. Além disso, a presença de outros canabinoides e terpenos (substâncias vegetais) que também possuem valor terapêutico podem auxiliar no tratamento do paciente. Essas plantas também são fontes mais seguras de CBD, pois com a alta concentração do canabinoide, pouca planta é necessária para a produção do medicamento, permitindo um controle maior sobre o produto e diminuindo o risco por intoxicação por agentes externos.

Muitos pacientes precisam de uma quantidade maior de THC para responder ao tratamento com extratos de CBD. O americano Jason David afirma que seu filho, Jayden, que possui síndrome de Dravet, não melhorou ao utilizar plantas com baixa concentração de THC, mas conseguiu se livrar de mais de 90% das convulsões com plantas com uma porcentagem moderada de THC. Liberar somente o CBD, portanto, exclui essas crianças da possibilidade de melhora. Outro grupo de pacientes que acaba sendo excluído nessa decisão são os que precisam de alta concentração de THC, como pacientes com câncer e esclerose múltipla – e isso inclui crianças. A liberação do CBD apenas, portanto, beneficia de forma limitada um número limitado de pacientes.

A demanda é suficiente, no entanto, se o valor cobrado pelo medicamento for alto, para trazer lucros significativos à indústria. A GW Pharmaceuticals, empresa produtora do Sativex (spray de extrato de THC), está em contato com a Anvisa desde antes das decisões de reclassificação do CBD, segundo Maurício Cândido de Souza, porta-voz da empresa. No ano passado, enquanto a Anvisa postergava ao máximo a tomada de decisão em relação ao CBD, a GW realizava testes clínicos envolvendo um novo medicamento chamado Epidiolex, com altas concentrações de canabidiol purificado. Os testes em crianças com epilepsia refratária têm apresentado bons resultados, mas ainda faltam estudos para que o medicamento chegue ao mercado. Esse medicamento pode não vir, no entanto, com um preço acessível. A importação do Sativex, por exemplo, conforme apurado pelo site Smoke Buddies (smkbd.com), pode custar mais de 30 mil reais, como já acontece em outros países. O preço deve diminuir quando a empresa entrar no mercado brasileiro, mas continuará sendo alto para a realidade da maior parte das famílias brasileiras.

Segundo o médico e pesquisador José Alexandre de Souza Crippa, será papel dos pacientes exigir da justiça o barateamento desses produtos. Portador de patentes de CBD sintético, Crippa defende o uso do canabinoide sintetizado ou purificado. Ele deve anunciar em março seus planos para a produção de um CBD sintético no Brasil, em parceria com a indústria farmacêutica. A questão é: por que os pacientes deveriam aguardar as pesquisas, o lançamento de produtos que podem não funcionar tão bem quanto o produto natural, para depois brigar na justiça para que esses produtos sejam acessíveis a todos quando poderiam plantar variedades de canábis ricas em CBD virtualmente de graça?

Um estudo realizado em Israel, em 2014, por Ruth Gallily e colegas, comparou os efeitos terapêuticos do CBD isolado e a planta Avidekel, que é rica em CBD, mas também contém uma série de outros componentes naturais. A pesquisa constatou que a canábis em sua forma natural é mais eficiente do que o CBD em sua forma isolada no tratamento de doenças inflamatórias. Não faz sentido, portanto, conceder o direito de monopólio de medicamentos a base de canabidiol para empresas que pretendem vende-lo da forma mais lucrativa possível, se isso significa um medicamento menos eficiente do que sua própria matéria-prima.

A reclassificação do CBD, portanto, não é beneficial para a maior parte dos pacientes; favorece empresas que visam o lucro; abre margem para empresas que se aproveitam desse momento de transição e funcionam de maneira duvidosa, colocando em risco pacientes sem muita opção; permite que pacientes sejam “usados” para o interesse particular de alguns; mantém os preços de produtos à base de CBD lá no alto; e impedem famílias e pacientes de plantar a obra-prima de seus tratamentos, favorecendo o monopólio da indústria. O mais preocupante é impressão de que “o problema está resolvido”, amenizando o apelo de ativistas e da mídia em favor de pacientes. O problema está longe de ser resolvido, e a luta pelo acesso ao tratamento com canábis toma novo fôlego e continua.

Maior processo da história da canábis medicinal em cheque

A Medical Marijuana Inc., empresa da qual a Hemp Meds é subsidiária, abriu processo na justiça em busca de uma indenização de 100 milhões da instituição sem fins lucrativos Project CBD. Segundo a documentação do processo, o relatório “Hemp Oil Hustlers”, resultado de uma pesquisa da Project CBD sobre a Medical Marijuana Inc. e empresas relacionadas, deixou propositalmente de citar o resultado final de um teste laboratorial feito com uma amostra de RSHO, principal produto da empresa, a fim de prejudicá-la.

A alegação, no entanto, não é verdadeira. O relatório menciona tanto o resultado que a Medical Marijuana Inc. chama de preliminar, indicando presença de metais pesados no RSHO, quanto o resultado final, indicando os níveis de metais pesados dentro dos padrões aceitáveis. A seguir, o trecho do relatório “Hemp Oil Hustlers” no original em inglês e a tradução para o português (a questão é tratada entre as páginas 17 e 19 do relatório):

“The initial results appeared to confirm [that] the RSHO contained high levels of several heavy metals, including nickel, selenium, molybdenum, arsenic, and silver. A few days later, Stewart Environmental Consultants issued a second report that contradicted its earlier findings: Five numbers, all pertaining to heavy metal toxins, were changed from unsafe to safe levels.”

Os resultados iniciais pareciam confirmar que o RSHO continha altos níveis de diversos metais pesados, incluindo níquel, selênio, molibdênio, arsênico e prata. Alguns dias depois, Stewart Environmental Consultants (laboratório onde o teste foi realizado) publicou um segundo relatório contradizendo os resultados anteriores: cinco números, todos relacionados a metais pesados tóxicos, foram alterados de níveis não seguros para níveis seguros.

O relatório “Hemp Oil Hustlers” questiona as motivações que levaram o laboratório a duvidar do primeiro resultado e a usar o mesmo cientista para fazer a segunda análise, já que é protocolo que outro cientista realize o segundo teste quando o primeiro é considerado insatisfatório. Eles também questionam o motivo pelo qual somente os resultados negativos divergiram no segundo teste.

O processo encaminhado pela Medical Marijuana Inc. não menciona outro teste laboratorial realizado pela Project CBD e citado em seu relatório sobre a empresa, que acusava a presença de solventes químicos tóxicos. A Medical Marijuana Inc. também não refutou nenhuma das outras alegações presentes no relatório, como as práticas administrativas duvidosas da empresa e os processos de fraude nas quais seu corpo administrativo está envolvido.

Por que estaria uma empresa multimilionária processando uma instituição sem fins lucrativos por 100 milhões de dólares com uma acusação sem base? A Project CBD acredita que a Medical Marijuana Inc. esteja tentando convencer seus clientes e investidores de que as acusações feitas são falsas, legitimando-se com processos como esse. A Medical Marijuana Inc. afirma que foi prejudicada pela Project CBD e acusa Martin Lee, responsável pelo dossiê da empresa, de maliciosamente conspirar contra ela, com intenção de interferir com uma prospectiva vantagem nos negócios.

A Project CBD abriu recurso na justiça para que o processo não seja julgado. Se o processo seguir em frente, será a primeira grande batalha legal no mercado da maconha medicinal.

Leia “Hemp Oil Hustlers” na íntegra: http://www.projectcbd.org/news/hemp-oil-hustlers-a-project-cbd-special-report-on-medical-marijuana-inc-hempmeds-and-kannaway/

Leia o processo aberto pela Medical Marijuana Inc.: http://www.projectcbd.org/wp-content/uploads/2015/04/37-2014-00036039-CU-DF-CTL_ROA-8_01-16-15_Amended_Complaint_1430360415996.pdf

Leia o recurso solicitado pela Project CBD: http://www.projectcbd.org/wp-content/uploads/2015/04/98806258_v-1_2015-04-28-Defendants_-Anti-SLAPP-Motion-to-Strike.pdf

 

Hemp Meds agindo ilegalmente no Brasil?

Envolvida em diferentes escândalos nos Estados Unidos, a Hemp Meds – ou Midway Meds, como às vezes gosta de ser chamada – tem agido de maneira inconsistente com a legislação brasileira e as regras da Anvisa para a comercialização e  marketing de produtos. A afirmação a seguir foi retirada da página da Midway Meds no Facebook:

“A Midway Meds tem como missão “Desenvolver, produzir, comercializar e distribuir medicamentos com base em CBD de mais alta qualidade e confiabilidade, promovendo saúde, segurança e bem-estar à população”.”

O grande problema nesta frase está na palavra “medicamento” e nas expressões: “promovendo saúde, segurança”. Conforme afirma a própria Hemp Meds, a empresa não produz medicamentos, pois não efetuou os testes necessários para a aprovação de um produto farmacêutico, seja ele fitoterápico ou não. Não há prova de eficácia e segurança para que esses produtos sejam farmacêuticos. Nos Estados Unidos, os produtos da Hemp Meds, Midway Meds e todas as outras subsidiárias são vendidos como suplemento alimentar.

A seguir, printscreens do site americano, que foi bloqueado para acessos no Brasil (quando se tenta acessá-lo do Brasil, o internauta é automaticamente encaminhado para o site brasileiro):

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O site afirma que a FDA (Anvisa americana) não avaliou os produtos da empresa com a intenção de tratar, diagnosticar ou curar doenças. Esses “medicamentos”, portanto, não são medicamentos e a empresa não pode alegar que são. As regras da Anvisa não são diferentes da FDA:

“A inspeção nas linhas de produção de medicamentos é um meio para comprovar seu funcionamento em acordo com padrões que garantem a qualidade dos produtos. Na inspeção, a linha de produção deve estar condizente com a descrição detalhada do processo de produção e com as metodologias de controle de qualidade nas diferentes etapas. O perfil de segurança e eficácia é obtido por meio da análise dos ensaios clínicos (fase 3) de produtos novos ou da revisão bibliográfica de utilização em diferentes subgrupos populacionais em produtos de uso tradicional.”

Os produtos da Hemp Meds não passaram por nenhum desses processos no Brasil. Assim, ao afirmar valor medicamentoso sem uma licença de marketing obtida junto ao órgão competente, a ação da empresa pode ser qualificada como propaganda enganosa.

Já no site brasileiro, onde o usuário pode comprar os produtos, a empresa é um pouco mais cuidadosa, mas ainda assim sugestiva. Sempre que alega valor medicinal, o site usa a palavra “CBD”, ou “canabidiol”, evitando o link direto entre o produto e o uso como medicamento. Ainda assim, imagens de médicos e informações sobre as “famílias RSHO”, que usaram o produto com fins terapêuticos, passam a mensagem de que se trata de um produto farmacêutico. O site, no entanto, possui um discreto link para a página da Hemp Meds no Facebook, onde constam as seguintes informações:

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A empresa parece se beneficiar da rara fiscalização e denúncia de desvio de conduta que acontece no Brasil. As páginas do Facebook podem ser rapidamente removidas caso haja alguma reclamação ou processo, e a Hemp Meds dificilmente será punida.

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Atitudes como essa demonstram quão irresponsáveis podem ser as atitudes de corporações internacionais em busca de lucro. Diversas famílias confiam na qualidade dos produtos da Hemp Meds e na transparência da empresa, que parece tentar confundir o público, ora se referindo a seus produtos como alimento, ora como remédio.

Sobre Drogas e Remédios

i227974No dia 15 de janeiro de 2015, atendi o celular sem reconhecer o número na tela. O Dr. José Alexandre Crippa nunca havia me passado seu número de celular, insistia no número do escritório onde eu nunca o encontrava. Meses após tentar entrevistá-lo – sem sucesso – Crippa me ligava em meu celular, educadamente perguntando se eu tinha tempo para ouvi-lo. Teria ele mudado de ideia? Por que, de repente, uma jornalista independente, sem qualquer vínculo com uma grande emissora, valia uma ligação? Quem sabe a decisão da Anvisa no dia anterior em reclassificar o CBD tivesse liberado seu stress e sua agenda e ele finalmente poderia me conceder aquela entrevista.

Ele me chamou pelo nome, Susan, e começou a falar, soava animado. Crippa dizia não poder estar mais feliz com a decisão da Anvisa. Era hora de colocar as mãos na massa, dizia. Entranhei o tom familiar com que me contava essas coisas, mas continuei ouvindo, ainda tentando compreender o propósito da ligação. Ele estava no aeroporto de Brasília, aguardando seu voo, e me contava sobre seus planos, os próximos passos a serem tomados. Estava muito contente em anunciar uma parceria com um laboratório europeu e que viajaria em breve a Edimburgo para buscar 1 kg de CBD.

“CBD natural ou sintético?”, perguntei, ainda confusa, mas curiosa. Ele pausou por um segundo, não esperava a pergunta, mas resolveu explicar. “É um semissintético”, disse. “E você pretende fazer testes clínicos com ele?”, perguntei em seguida. Crippa explicou que testes clínicos não seriam necessários, ele usaria o medicamento em pacientes para registrar os resultados; já estava tudo encaminhado. Ele disse algo sobre eu ter sido selecionada, junto com outros. Ele sabia quem eu era? Me chamara pelo nome, não podia estar me confundindo com outra pessoa ou ter ligado no número errado. Prossegui com minhas perguntas: “Mas, se as crianças com epilepsia têm usado extratos naturais, com outros canabinoides, não é possível que o CBD isolado não funcione?”.

Crippa então me explicou que esse era um argumento usado para enganar as pessoas: “Tem um grupo de pessoas que querem legalizar o recreativo e são contra o puro, porque aí cai o argumento deles”. Decidiu usar os irmãos Stanley (donos de um dispensário no Colorado) como exemplo, afirmando que eles têm uma “fabriqueta quase artesanal” e que eles usam o argumento de que o THC é necessário por interesse comercial, já que o produto que eles têm possui cerca de 1% de THC. Crippa explicou que, como o produto deles é natural e, portanto, impuro, eles têm interesse em publicar que outros compostos são necessários.

Ele disse ainda que muitos usam o argumento de que há um “efeito comitiva” (efeito em que os componentes de uma planta, após ela ter sido consumida, interagem entre si no organismo humano, agindo de forma diferente desses mesmos componentes isolados) no produto natural, mas que isso não é aceito na academia. Segundo ele, não há provas científicas desse efeito, já que todos os estudos foram feitos com CBD isolado. Como os dispensários não conseguem fabricar o CBD isolado, porque sai muito caro, eles se posicionam contra. Todos os estudos sérios – e Crippa exemplifica aqui seus estudos usando o CBD isolado para o tratamento de Parkinson – foram desenvolvidos com componentes isolados.

Dr. Crippa então declarou, com ar triunfante, que “estamos muito próximos de ter um sintético no Brasil”. Haveria uma coletiva de imprensa em março para anunciar avanços nesse sentido. Ele assegurou que testes seriam necessários e que ainda levaria um tempo para ter tal medicamento disponível. Para que testes assim fossem desenvolvidos, precisaríamos de um sintético, já que “como não tem patente, o canabidiol não é de interesse da indústria farmacêutica”. Uma parceria com a indústria seria necessária para desenvolver os caríssimos testes clínicos, já que, nem eles em Ribeirão Preto (USP) conseguiriam arcar com esses custos, mesmo que obtivessem lucro no resultado.

Ele tem toda a razão. A indústria farmacêutica não tem qualquer interesse em fitoterápicos. Plantas não podem ser patenteadas, seus extratos podem ser produzidos por qualquer pessoa e, portanto, não há lucros bilionários a serem alcançados. Componentes sintéticos são outra história, mas são moléculas novas produzidas em laboratório e precisam de todo tipo de testes para serem aprovadas. O processo pode durar dez anos, talvez menos tempo se for acelerado. Uma das patentes de Crippa (de 2014) é o CBD fluorado, uma molécula me-too. Essas moléculas tendem a fazer a mesma coisa que a molécula que imitam, mas, por causa desse flúor que foi pendurado nela, pode ter interações diferentes no organismo, como aumentar ou diminuir a potência de seus efeitos. Estaria o médico contando com a pressão de pacientes desesperados na justiça e na imprensa para acelerar a aprovação de sua droga? Crippa disse ainda que os pais e pacientes podiam pressionar as autoridades para que o medicamento, depois de disponível, ficasse mais barato. Medicamentos recém-lançados, no auge de sua patente, costumam ser caros.

Ele voltou então a explicar que os extratos naturais eram perigosos, por dois motivos. O primeiro deles é que “ficamos preocupados com as impurezas”. Segundo o doutor, até mercúrio já foi encontrado nesses extratos importados. Ele diz não saber se os rumores são verdadeiros ou não, mas que há uma série de contaminantes nesses produtos, especialmente os vindos da China. Outro motivo para não aprovar os extratos naturais é a presença do THC. Segundo ele, o THC, em grandes quantidades pode causar convulsões nas crianças. Lembrei-me de ter ouvido esse argumento antes, não de estudos científicos (não há nada na literatura acadêmica indicando que o THC possa induzir convulsões, mas sim que o composto tem grande potencial para tratar doenças convulsivas), mas de mães assustadas. Crippa dizia que várias crianças que usaram medicamentos com THC voltaram a ter crises convulsivas violentas. Teria sido ele o responsável por espalhar esse rumor?

Exemplo de estudo indicando que a canábis tem efeito positivo em pacientes com convulsões:

http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2376682/?page=3

Ele também explicou que o THC em crianças pode aumentar a probabilidade de esses pacientes desenvolverem esquizofrenia, fazendo questão de citar o mesmo estudo sueco que cita em suas entrevistas. Essas conclusões são o que chamamos de “Bad Science”. Estudos que verificaram a relação entre o uso de canábis e esquizofrenia foram desenvolvidos (para simplificar bastante) de duas formas: contando quantos esquizofrênicos foram expostos ao uso da canábis ou quantos usuários de canábis desenvolveram esquizofrenia. De fato, há uma relação, já que muitos usuários de canábis desenvolvem esquizofrenia. Isso pode significar que a canábis causa esquizofrenia ou que pessoas com tendência à esquizofrenia têm propensão ao uso de drogas, sobretudo a maconha. Estudos longitudinais, no entanto, verificaram que o aumento no número de usuários de canábis na população não está relacionado a um aumento no número de esquizofrênicos. Ou seja, a relação entre a canábis e a esquizofrenia não é causal.

No entanto, alguns estudos concluem que a exposição à canábis leva ao aparecimento de esquizofrenia pacientes que de outra forma não a desenvolveriam. Alguns chegam até a determinar a relação entre a dosagem e a probabilidade dos sintomas psicóticos ocorrerem. É a ciência da imaginação. Podemos correlacionar qualquer coisa desta forma. O site de Tyler Vigen dá diversos exemplos disso, demonstrando que as conclusões mais absurdas podem surgir da má interpretação estatística. O link abaixo, por exemplo, mostra a correlação entre o número de afogamentos em piscinas e o número de filmes em que Nicolas Cage aparece. Podemos concluir que os filmes de Nicolas Cage causam afogamentos?

http://www.tylervigen.com/view_correlation?id=359

Temo que Crippa saiba disso tudo. Um estudo desenvolvido em 2014, que conta com a participação do médico, determinou que tanto o CBD quanto o Win 55212 (análogo sintético do THC, mas com potência superior) ajudam a reverter quadros psicóticos em modelos animais (ratos) de esquizofrenia. A seguir, o link para o estudo:

http://journal.frontiersin.org/Journal/10.3389/fphar.2014.00010/abstract

Existem ainda outros estudos (alguns em humanos, mas com um número pequeno de pacientes) em que a esquizofrenia foi tratada com THC apenas. Isso indica que a relação entre a canábis e distúrbios psicóticos é muito mais complexa do que Crippa tem afirmado, propositalmente dando a impressão de que o THC é perigoso, mas o CBD é bom, sozinho.

Eu havia conversado com diferentes famílias com crianças portadoras de epilepsia, e escutei que, em muitos casos, a presença do THC era necessária. Jason David, da Califórnia, conta que seu filho, Jayden, precisa de uma dose de THC superior a 1% para controlar suas crises. Plantas e extratos com doses menores não funcionaram. Contei o caso para o Dr. Crippa, que não se deixou abater com o argumento. Ele respondeu que seria uma questão de aumentar a dose de CBD, não haveria a necessidade do THC. Disse ainda que, no caso de um pai que não tem mais o que fazer, dar o extrato natural era a única alternativa. Nesses casos, era melhor que desse o medicamento impuro mesmo, mas Crippa estava confiante de que poderia fornecer uma alternativa superior com seu CBD isolado sintético.

Ele afirma, em seguida, que o THC não é tão perigoso para adultos e, portanto, também pretende desenvolver medicamentos com THC e CBD combinados para tratar, principalmente, a esclerose múltipla. Ele deixa claro, no entanto, que só quer desenvolver medicamentos “puros”, componentes isolados, nada natural. Apesar de ele ter afirmado que o efeito comitiva não era cientificamente aceito, ele menciona as interações entre o THC e o CBD e como elas podem ajudar o paciente.

A partir daí, Crippa passou a explicar procedimentos e perguntar sobre quais exames eu havia feito. Foi então que compreendi: “Acho que você está me confundindo com alguém, eu não sou paciente, sou jornalista”. Ele notou seu erro: julgando que falava com uma paciente, revelou uma série de informações sigilosas. Um comentário me chamou a atenção: “Bem que eu estranhei, você sabia tanta coisa”. Ele parecia bem consciente da falta de conhecimento de seus pacientes (não os julgo, é difícil mesmo encontrar informações confiáveis quando se trata de canábis) e ao notar que eu sabia um pouco mais passou a usar toda a sua habilidade argumentativa para me convencer de que o seu caminho era o mais indicado, o mais confiável. Talvez por isso advogava contra o THC com aqueles argumentos batidos.

Tentou então medir o estrago: “De que veículo você é?”. Expliquei que havia trabalhado em um projeto independente (se lembrou então de quem eu realmente era) e que não estava trabalhando pois me mudaria para a Inglaterra no mês seguinte. Achei que ele fosse entrar em pânico e desligar o telefone, mas foi muito educado. Crippa perguntou para qual cidade eu iria, já que ele mesmo fez pesquisas em Londres, me desejou sorte na carreira e, antes de desligar o telefone disse: “Eu falei algumas informações sigilosas para você, achando que era outra pessoa, não fala pra ninguém, tá?”.

Refleti sobre esse último pedido durante vários dias. Como jornalista, há um conflito ético com o qual eu teria que lidar. As informações caíram acidentalmente no meu colo, o que eu faria com elas? Pensei nas repercussões de revelá-las, conversei com algumas pessoas pedindo conselho. O peso de não revelar a estranha conversa, no entanto, parecia maior. Pacientes têm confiado na opinião de médicos, têm colocado suas esperanças na indústria, diversas pessoas foram iludidas a pensar que um medicamento natural era perigoso. Milhares de brasileiros estão sem tratamento hoje, enquanto um remédio eficaz poderia estar plantado em seus próprios quintais, de graça. Enquanto isso, pais perdem seus filhos para convulsões excessivas; famílias perdem entes queridos para o câncer, esclerose múltipla, Aids; pacientes sofrem desnecessariamente dores crônicas que os invalidam.

A decisão da Anvisa favoreceu o caminho mais longo, não necessariamente mais seguro, e mais lucrativo para a indústria. Enquanto a forma natural da canábis estiver proibida, a maior parte da população não terá acesso a esse tratamento. Enquanto as pessoas não tiverem informações sobre o assunto, a erva permanecerá proibida para uso medicinal. Eu não me perdoaria se segurasse informações e favorecesse esse caminho.

A regulamentação da maconha pode ajudar a economia do Brasil

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A frase pode soar estranha, mas não é loucura. Estamos à beira de uma crise econômica grave. Com a Copa do Mundo, a tendência é piorar. Enquanto o governo faz questão de iludir a população, dizendo que a Copa ajudará a economia instável do país, os economistas dizem o contrário.

Em entrevista para a Época, o professor de finanças da FGV, Luís Carlos Ewald, afirma que: “Todo mundo diz que a Copa vai ser muito boa para o Brasil. Mas depois que o evento passar, não haverá mais investidores no país, pois estão todos com medo”. Os investidores não são bobos. Quem quer investir em uma economia instável, com a inflação correndo solta e o risco de o Governo Federal interferir no seu negócio a qualquer momento? A burocracia e o câmbio flutuante também espantam multinacionais, que temem perder seus investimentos. Além disso, um monte de dinheiro entrando no país em junho e julho e depois sessando, só tem um resultado certo: mais inflação. A Copa se tornou suicídio econômico, não houve investimentos significativos no transporte, saúde, estradas. O resultado é uma crise econômica.

Os investimentos em estradas e portos, para o transporte de mercadorias pelo Brasil, não foram suficientes. As importações chegam a ritmo lento e o trânsito de caminhões só piora. Com a canábis, esse problema pode não interferir. A justiça liberou pela primeira vez a importação de um remédio derivado da canábis para a menina Anny Fischer, de Brasília, mas o custo da importação é alto e o transporte lento. As taxas alfandegárias são ridiculamente altas, reflexos do protecionismo brasileiro. Outras crianças não terão acesso porque a epilepsia não atinge somente famílias com alto poder aquisitivo. O problema, no entanto, tem fácil solução.

Regulamentando a produção e venda da canábis em território nacional, uma série de pequenos negócios locais surgiria da noite para o dia no Brasil, como aconteceu na Califórnia em 1996, e recentemente no Colorado. Com a legalização, o Colorado faturou um milhão de dólares por dia, enquanto o estado da Califórnia, que passava por uma crise financeira nos anos 90, passou a ser o oitavo estado mais rico dos Estados Unidos, explica Aseen Sappal, coordenador da Oaksterdam University, em Oakland.

Como a canábis pode ser produzida em qualquer lugar do Brasil, dentro ou fora de casa, os consumidores não precisam ir muito longe para obter sua mercadoria. Como os custos de uma canábis produzida localmente sai bem mais baixo, pois não precisa passar pelo alto custo do transporte, o consumidor vai preferir o produto local à importação, da qual os preços cobririam, inclusive, a burocracia portuária, pedágios, tempo de entrega, gasolina etc.

A canábis também ajuda pessoas que poderiam estar inválidas a continuar trabalhando e ter uma independência financeira. Esse é o caso de Gilberto Castro, que consegue se livrar dos espasmos causados pela esclerose múltipla graças à maconha. Ele fuma pela manhã, antes de ir trabalhar e à noite, quando chega em casa. De outra forma, ele afirma que não conseguiria continuar trabalhando como designer gráfico, pois mal conseguiria usar o mouse do computador.

A falta de investimentos na saúde, portanto, são aliviados com a regulamentação da maconha, que pode até substituir, em muitos casos, remédios caríssimos disponíveis nas farmácias. Isso pode até, quem sabe, diminuir os gastos públicos com os remédios distribuídos gratuitamente através do SUS, conforme pessoas optem por usar a canábis como forma de tratamento. Os produtos à base de canábis também podem ser distribuídos de diversas formas – comestíveis, vaporizados, plantas híbridas – o que garante uma grande variedade de produtos e uma concorrência livre, que dificilmente cairá nas mãos de monopólios, especialmente se esse mercado for devidamente regulado.

Com a regulamentação, serão recolhidos impostos com as transações, o que não acontece com o mercado ilegal de drogas. Com isso, pode-se decidir o destino do dinheiro gerado pela venda da canábis, como a melhoria de hospitais e escolas. Serão economizados, ainda, milhões de reais em recursos para sustentar a falida guerra contra as drogas. Isso também diminuiria o crescimento da população carcerária, que custa milhões ao Estado e está repleta de usuários e traficantes de drogas.

A canábis também é capaz de produzir cânhamo, um material natural, de extrema resistência, que pode produzir tecidos, carros (Ford produziu o primeiro carro de cânhamo no início do século XX) e até combustível, sem prejudicar a natureza. Segundo Cris Conrad, autor de diversos livros sobre a canábis, a planta é capaz de absorver toxinas do solo, ajudando a combater solos contaminados. Ele também explica que o cânhamo, além de produzir tecidos de melhor qualidade, é mais aproveitável que o algodão, ou seja, são necessários menos hectares de área plantada para produzir a mesma quantidade de tecido.

A canábis, portanto, ajuda na saúde, no meio ambiente e, principalmente, na economia decadente do Brasil. Pena que não atrai votos. Então, eu faço questão de apontar: nas eleições para presidente desse ano, voto no primeiro candidato a apresentar um plano sensato de regulamentação das drogas.

De Frente Pro Crime

20140315_180944Coloquei a cabeça pra fora da janela assim que ouvi os tiros, o máximo que as redes de segurança permitiam. Meu marido veio em seguida.

– Tá vendo a polícia? – perguntei.

– Sim, vamos lá ver, pega o celular.

Descemos correndo e logo nos deparamos com o corpo de um bandido, morto a tiros pela polícia após uma perseguição. Mais a frente encontramos uma BMW que havia batido em um poste, e outro criminoso deitado no chão, com um tiro na perna, mas vivo. Aparentemente, um terceiro fugiu.

Me lembrei da música de João Bosco, “De Frente Pro Crime”. Em versos, o cantor descreve um cadáver na rua, que atrai aquela rodinha de curiosos e, em seguida, está todo mundo no bar. Camelôs aproveitam a multidão para vender suas mercadorias, outros oportunistas fazem discursos políticos. Eventualmente todos vão embora e esquecem do ocorrido. E fica lá o corpo estendido no chão.

Os tiros mal sessaram e a cena do crime já estava repleta de expectadores, saindo dos prédios e casas da vizinhança. Mais carros da polícia se aproximavam, aos poucos cercaram o local com seus veículos e as faixas preto-amarelas. O fato de eu não ter sentido nada – nenhum calafrio, nojo, horror ou pena – me perturbou um pouco. Esse tipo de situação se tornou tão comum que o que atrai as pessoas é mais a curiosidade mesmo. Até mesmo crianças corriam soltas do outro lado da rua, sem medo do cadáver, apontando dedos e fazendo sons de “Pah! Pah!”.

Comecei a ouvir os comentários dos meus vizinhos, e foi isso que acabou me chocando. Ouvi de duas mulheres proferirem as seguintes palavras:

– Um bandido a menos pra eu me preocupar!

– Bandido bom é bandido morto, ótimo trabalho da polícia.

O mesmo discurso se repetiu uma, duas, três vezes, e continuou se repetindo até que os sons dos helicópteros do Brasil Urgente, Globo News e mais alguns noticiários desaparecessem. Mas eu não parava de me perguntar: quando foi que o policial virou carrasco? Quando foi que um bandido comum passou a merecer a pena de morte?

Vai ver fui eu que perdi a coisa toda. Nós nunca saímos da era medieval. Nem na época em que João Bosco abriu a janela, nem agora. É tudo preto no branco, se é criminoso, merece morrer. Ninguém vai pensar na coisa como um todo, ninguém vai lembrar que já cometeu erros, ninguém vai querer saber se o cadáver tinha família, quais eram suas motivações, se teve escolha. Cada um colhe o que plantou.

E o que eu plantei? A indiferença. Me senti melhor ao saber que não plantei tanto ódio quanto os meus vizinhos, mas isso não faz da minha situação nem um tantinho melhor que a deles. Estamos todos presos nesse ciclo vicioso, não há causa para o problema e não há solução. Participamos ativa e passivamente de um sistema torto onde aprovamos assassinatos punitivos, deixamos a corrupção e a brutalidade acontecer, aceitamos a vida como ela é e seguimos em frente. Refletir sobre uma situação banal como essa dá muito mais trabalho e dói.

Sem pressa foi cada um para o seu lado, pensando em uma mulher ou em um time. Olhei o corpo e fechei minha janela de frente pro crime.