Mensalão: entendendo a corrupção política brasileira

Tendo em vista as recentes manchetes sobre o caso “Mensalão”, em que atos de corrupção política estão sendo julgados, é óbvia a falta de entendimento, por parte da população sobre o que isso significa para a sociedade, além das causa e consequências da corrupção política no Brasil. O caso em questão, o “Mensalão”, se trata do desvio de milhões de reais em receita pública, usados, principalmente, na compra de votos dentro do parlamento, para que leis sejam aprovadas sem passar por uma análise ou deliberação, como uma forma, também, de esmagar a oposição. Situações como essa ferem a democracia e os direitos humanos, além de irem contra a ética e a moral vigentes. Ocorrem, entretanto, comum e explicitamente no Brasil. Por que isso acontece?
A corrupção na política brasileira é, de fato, algo lamentável para o desenvolvimento do País. O problema que enfrentamos ao analisarmos as raízes do problema é que elas estão tão profundamente inseridas na nossa cultura, que se tornaria um debate infindável de teorias sobre causa e solução. Portanto, três tópicos podem nos guiar nessa análise:
1 – As raízes culturais que permitem que a corrupção aconteça tão explicitamente como no caso do “Mensalão”;
2 – O papel da imprensa na política;
3 – A banalização da ética no sistema capitalista neoliberalista.

As raízes da corrupção

Da forma como os ingleses do norte dos Estados Unidos viam o Novo Mundo – como lugar promissor para se construir uma nova pátria – nós nunca vimos o Brasil. O nosso pedaço de Novo Mundo não foi mais que uma colônia de exploração até a chegada da família real, em 1808, fugida de Portugal graças às campanhas de Napoleão Bonaparte. Ainda assim, tentaram trazer os costumes portugueses para uma terra que em nada se parecia com Portugal, criando assim uma população que Sérgio Buarque de Holanda chamou de desterrados em sua própria terra:
“A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem.” (Holanda, pag.31, 2006)
O ápice das tentativas de transformar o Brasil em um novo Portugal, foi a proibição do uso de qualquer língua além do português, impedindo que os negros africanos e os indígenas nativos perpetuassem suas culturas. O que nós temos no Brasil, então, é uma mistura de nativos sendo expulsos de suas terras (índios), africanos que nunca quiseram deixar seu continente, muito menos para serem explorados, e os portugueses insistentemente impondo uma cultura estrangeira em uma terra que não corresponde aos seus costumes. Mesmo os imigrantes europeus que vieram posteriormente foram explorados para continuar extraindo as riquezas naturais do Brasil, passando por seus diversos ciclos econômicos.
É de se esperar que não se desenvolvesse muito o “amor à pátria” por aqui. Enquanto cada estrangeiro tentava implantar um pouquinho de sua cultura no Novo Mundo, uma identidade nacional se formava fraquinha e capenga com o decorrer do tempo, até alcançar o que é hoje o Brasil. Vê-se hoje um brasileiro pouco patriota, desinteressado quanto à política e desatento quanto aos políticos corruptos.
As adversidades do Novo Mundo também deram origem ao “jeitinho brasileiro”, a arte de ser “malandro” e se adaptar a situações difíceis. A forte presença da cultura latina, a necessidade de adaptação e a mistura de culturas ocasionou uma variedade de valores morais muito grande. É muito comum encontrar brasileiros que participam de mais de um culto religioso, de crenças e valores muitas vezes contraditórios, o que nos leva a conclusão de que, no Brasil, também é possível se adaptar a regras de conduta e valores morais diferentes, conforme a conveniência.
O exemplo da religião não é único, convivemos diariamente com uma ética abstrata. Muitos atos ilegais são tolerados no Brasil pela população, como a venda de CDs e DVDs piratas, o roubo de sinal de TV a cabo e internet, a falsificação de produtos, entre outros atos “malandros”, apesar de ilegais ou antiéticos. O brasileiro, na maior parte das vezes, sabe que fez ou faz algo errado, mas esses atos são tão comuns e tão tolerados pelos que estão à sua volta, que ele não se incomoda em praticá-los. Nessas circunstâncias, é compreensível uma cultura permitir que a corrupção aconteça.
Entre as diversas formas de corrupção, a de teor político é a que mais afeta a população brasileira, mas estamos tão acostumados com ela que não nos damos conta de sua gravidade. A relativa ética brasileira é, portanto, um agravante na situação política na qual nos encontramos, que permite a ocorrência de esquemas de corrupção como o do próprio “Mensalão”. Sem a intervenção da população, os políticos só encontram obstáculos em outros políticos para alcançar seus objetivos. Sendo esses outros, também, possivelmente corruptos, esquemas de propina como o “Mensalão” são criados para ultrapassar obstáculos, possibilitando um poder muito grande a líderes de partido. Por esse motivo os políticos corruptos são preferíveis nos jogos políticos, já que seus votos e seu apoio podem ser facilmente comprados. Essa é uma reação em cadeia que tem acontecido desde as “DIRETAS JÁ”, culminando no “Mensalão”.

O papel da imprensa

Não podemos responsabilizar somente as raízes culturais do Brasil quando nos referimos à corrupção política. A grande imprensa tem, também, um papel importante na manutenção das condições sociais que permitem esses acontecimentos. O mestre em comunicação e mercado, Fábio Cardoso Marques, explica como a imprensa tem se transformado no ambiente capitalista brasileiro:
“A imprensa contemporânea se diferencia bastante da imprensa de algumas décadas atrás, quando os grandes jornais se importavam mais com a “missão” jornalística de formação de uma opinião pública, obviamente com base na perspectiva política de cada jornal, ao contrário do que acontece na atualidade, em que predomina o padrão jornalístico de prestação de serviço. Esse conceito de “missão” foi deixado de lado e substituído pela preocupação da empresa jornalística em atingir melhores resultados econômicos. Houve, dessa maneira, uma significativa transformação da imprensa escrita e da notícia em uma mercadoria específica que deve ser vendida em dois mercados diferentes: dos anunciantes e dos leitores.” (Marques, pag. 33, 2006)
Sendo assim, a qualidade da notícia de “fazer o público pensar” decai, na medida em que se torna mais interessante vender do que informar. Notícias sensacionalistas, superficiais, rápidas e simples atraem um público maior, trazendo um retorno financeiro mais atrativo para os veículos. As disputas políticas perderam espaço para as celebridades e as fofocas, as coberturas políticas se tornaram supérfluas e pouco exploradas.
Usarei o mesmo exemplo utilizado por Carlos Sandano ao explicar a manipulação ideológica do jornalismo moderno:
“Tomemos como exemplo a análise feita em um trabalho de pesquisa (Saisi, 2003) com a Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo na campanha presidencial de 2002. Durante todo o período eleitoral, a mídia concentrou-se quase que exclusivamente em torno de três temas centrais: os resultados de pesquisas eleitorais, a repercussão das campanhas dos candidatos na televisão e a opinião de porta-vozes do mercado financeiro sobre as peças publicitárias e as declarações dos candidatos (Saisi, 2003, p.375), ou seja, a cobertura midiática é mais fortemente influenciada pelas decisões dos coordenadores de marketing das campanhas do que por instâncias partidárias ou organizações civis, ainda que estas continuem a exercer certa influência regional. Além disso, a base para determinar a relevância das propostas é o aspecto quantitativo, ou seja, a posição de determinado candidato nas pesquisas, não a relevância ou a legitimidade de conceitos ou programas políticos.” (Sandano, pag. 66, 2006)
Essas características continuam na grande imprensa atual e tendem a se agravar se não houver uma mudança na forma como o jornalismo é feito. Entretanto podemos observar, baseando-se na repercussão do caso “Mensalão”, um leve aumento de interesse por parte da população e uma grande cobertura por parte da imprensa; mas não podemos nos dar por satisfeitos. Ainda existem diversas melhorias a serem feitas no trato com crimes políticos.

A Ética no mundo capitalista

Outro fator de destaque ao analisarmos a corrupção política brasileira, é a fragilidade da ética no mundo capitalista. O Brasil tem passado por um rápido crescimento econômico, afetando os hábitos de consumo e, portanto, interferindo no comportamento e na ética dos brasileiros.
Os valores morais e os costumes, que antes eram aprendidos através de nossas relações sociais cotidianas, perdem valor na medida em que o pensamento consumidor capitalista se alastra. A necessidade de consumir com frequência, imposta pela obsolescência programada dos novos produtos, as rápidas mudanças da moda e dos avanços tecnológicos, a alienação, entre outros aspectos da economia de consumo, transforma o trabalho e a busca por capital nas principais prioridades do cidadão moderno. Sendo assim, as pessoas passam menos tempo com a família e mais tempo trabalhando, o que impede uma educação informal dos filhos, essencial para o desenvolvimento da ética no ambiente privado. Castro explica as possíveis consequências dessa situação:
“Diante dessa realidade surgem algumas constatações: o crescimento da violência e a banalização da vida humana; a mercantilização do sistema de ensino e de saúde; as amizades que se desenvolvem com base em interesses econômicos; a exclusão de pessoas do mercado de trabalho; a naturalidade com que pessoas expõem na mídia sua vida privada; a mercantilização da religião que propicia a relação “mercadológica” com o sagrado; o aumento de pessoas depressivas e vazias de “sentido” etc. Por trás de todos esses sintomas não estaria a lógica de mercado que perpassa toda a sociedade?” (Castro, pag. 125, 2006)
Esse enfraquecimento da ética também favorece a alienação. A população tende a não se interessar pelo que acontece na política e, em especial, não compreender como isso a afeta, assumindo uma postura de passividade. Bauman, em “A Ética é Possível no Mundo de Consumidores?”, explica como o consumo afasta o cidadão de seu papel na manutenção da democracia:
“Mas o consumidor é um inimigo do cidadão. Por toda a parte ‘desenvolvida’ e rica do planeta, abundam sinais de um desvanecido interesse na aquisição e no exercício de habilidades sociais, apatia política e perda de interesse no desenrolar do processo político. A política democrática não pode sobreviver muito tempo à passividade dos cidadãos produzida pela ignorância e a indiferença política.” (Bauman, pag. 195, 2011)
Ou seja, essa alienação torna o cidadão brasileiro vulnerável às tramoias políticas e aos atentados à democracia, como é o caso do “Mensalão”. Comprando votos parlamentares para a aprovação de leis, o esquema do “Mensalão” destrói qualquer oposição, atentando assim contra a democracia.
A maior parte da população, seja pela desinformação da imprensa, pela alienação do consumismo, pela pobre educação ou pela relatividade ética, não compreende a gravidade desses problemas e pouco faz para tentar entende-la ou encontrar uma forma de resolver a situação. Nós simplesmente aceitamos a realidade política como ela é e deixamos que outra pessoa cuide disso, seja lá quem for. Afinal, acreditamos que a corrupção faça parte de nossas vidas assim como o “jeitinho brasileiro”: pode estar errado, mas nós já estamos acostumados. O brasileiro compreende o fato de que existem irregularidades na política, mas parece pensar que isso o afeta tanto quanto um amigo comprar um DVD pirata; é errado, mas não pode fazer mal a ninguém. Enquanto a população não compreender a seriedade de ocorrências que vão dos mais simples atos de corrupção passiva na política até os grandes esquemas como o do “Mensalão” e a intensidade com que afetam o País inteiro, nada fará para interrompê-las.