Hempmeds se apropria do nome de outras marcas

No dia 18 de novembro de 2015, a empresa Hempmeds registrou o nome da marca Revivid no Brasil. A empresa americana Revivid é a principal concorrente da Hempmeds no País, já que também fabrica óleo rico em CBD e possui uma vasta clientela no Brasil.

O registro foi feito pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) e ainda aguarda exame de mérito. Segue um print da descrição dos produtos que a marca representaria:

registro revivid2

O uso da palavra “medicinal” aparece em todos os exemplos de produtos, significando que a Hempmeds precisaria de uma licença de marketing especifica para vender produtos medicamentosos. Para isso, segundo a Anvisa, é preciso haver prova de segurança e eficácia desses produtos, o que normalmente significa estudos clínicos para cada um desses produtos.

Será que a Hempmeds tem mesmo intenção de usar a marca Revivid? Ou simplesmente registrou o nome para a verdadeira Revivid não conseguir usar sua marca no Brasil?

Quando se trata de propriedade intelectual, especialmente uma marca que já tem sido usada há anos em outro local, é fácil provar que a Hempmeds não possui direitos sobre o nome Revivid. No entanto, o processo é custoso e lento no Brasil, necessitando de advogados, tradução de documentos e uma série de inconveniências para a empresa. Nesse meio tempo, é possível que a Hempmeds tenha mais essa vantagem sobre a concorrência, ou até comercialize produtos com o nome Revivid para confundir pacientes que já utilizavam a marca original.

 

registro revividPor outro lado, a justiça determinou que a Hempmeds está proibida de fazer propaganda do seu principal produto, o RSHO, até mesmo em seu site. Conforme eu havia mencionado em outro post, o RSHO não tem registro na Anvisa e a Hempmeds não tem licença para vender medicamentos no Brasil, mas insistia em declarar que seus produtos são medicinais.

Eles resolveram, então, colocar no site brasileiro a mesma declaração feita no site americano, afirmando que: “Estas declarações não foram avaliadas pela FDA e não são destinados a diagnosticar, tratar ou curar qualquer doença”.

 

hempmedsbrsite

A página oficial da Hempmeds no Facebook, entretanto, ainda afirma que a empresa produz e vende medicamentos:

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Será que a empresa vai começar a se comportar no Brasil, ou vai continuar com essa conduta duvidosa?

Rir é o melhor remédio – a história de Beto Volpe

 

Imagem de vice.com

Imagem de vice.com

Envolto em escuridão, Beto pôde finalmente enxergar uma luz. O clarão se abria, ofuscando sua visão, até que ele a viu: a silhueta de uma mulher saía da luz e se aproximava dele. Conforme ela se aproximava, Beto conseguia distinguir seus traços. A moça era linda, sorridente e o observava fixamente. Beto não conseguia tirar os olhos dela, petrificado diante de sua beleza. Ela estava vestida de branco. Seria um anjo? Depois de tudo, afinal, ele iria para o céu, fora bem avaliado. Não havia fogo, não havia dor, não havia tristeza. Só aquela moça linda, um anjo, que se aproximava para guiá-lo ao pós-vida. Tanto sofrimento, tanta luta, chegava agora ao fim. A mulher agora estava bem próxima dele, ele a via nitidamente, mas não conseguia proferir uma só palavra. Havia uma áurea envolta dela, como se ela mesma emanasse luz. Quando estava bem perto de Beto, a moça finalmente falou.

– Acordou, Seu Luiz! Que bom! Sua mãe vai ficar feliz – disse a enfermeira.

Beto acordava de um coma que durara três dias. Aos poucos voltou a sentir as agulhas, o desconforto, fome, vontade de ir ao banheiro e uma irritação pulsante. Soltou um grito.

– Achei que estava tendo uma afterlife experience! MAS, NÃO! ESTOU NA MERDA AINDA!

Beto e a morte são tão íntimos que ele se sente à vontade para fazer piadas. Aos 52 anos, ele já passou por 23 cirurgias, três acidentes cerebrais, dois cânceres, duas próteses instaladas, cinco implantes e enfrenta tudo isso com bom humor e 26 pílulas diárias.

– Enquanto eu puder brincar com a morte, ela me deixa quieto – diz ele.

Para ter certeza que eu anotava o seu nome corretamente, ele o soletrou: “V” de velório; “O” de óbito; “L” de lápide; “P” de pêsames; e “E” de enterro. Beto Volpe. Luiz Alberto, mas todos o conhecem como Beto. Nascido em São Vicente, litoral de São Paulo, ele tem algumas certezas na vida. A primeira foi provavelmente o fato de ser gay. Sempre soube, desde criança. Era vítima frequente dos valentões quando pequeno:

– Eu era pequeninho, quatro olhos e fresquinho. Era feio e era inteligentinho, quer dizer, fodeu! Eu era aquele que vivia tomando cascudo.

De família católica, Beto ia todos os domingos à igreja com os pais, o que o deixava muito confuso. Aparentemente, estava rezando para os mesmos santos que o mandariam para o inferno. Quando chegava em casa e ligava a TV, assistia a impressões estereotipadas de homossexuais nos programas de comédia. Não se identificava com nada, vivia em um mundinho só seu, isolado. Até que, aos oito anos de idade, percebeu que não era o único. Empreendedor desde pequeno, Beto passou a montar clubinhos onde outros garotos “fresquinhos” podiam se reunir e se conhecer. Chegou a cobrar taxa de admissão e mensalidade, e o clubinho era um sucesso. Daí ao fim da adolescência, Beto teve sua fase mais sexualmente ativa.

Nascido em 1961, Beto sempre teve um pezinho na música.

– Naquela época, década de 60, se você era um garoto obediente você aprendia a tocar violão. Se você era uma peste, aprendia a tocar acordeom. Adivinha o que eu aprendi a tocar?

Além de tocar acordeom, Beto também adora cantar, e tem uma voz de derreter. A voz grave, dicção impecável, ele canta tão bem quanto fala.

Nos anos 1980, uma sombra pairava sobre a Baixada Santista. Reduto de uma grande comunidade gay na época, o litoral paulista foi foco de uma epidemia de Aids que se espalhava pela população jovem do mundo. Na época, Beto trabalhava para a Caixa Econômica Federal, em uma unidade próxima do Secraids, em Santos. A cidade foi considerada a capital mundial da Aids na época, e o Secraids era o principal local de atendimento e onde se podia fazer o teste de HIV. Assombrado pela possibilidade, Beto decidiu ir fazer o teste e descobrir de uma vez por todas, mas ele não foi discreto quanto à decisão.

– VOU FAZER O EXAME DE AIDS! – disse em voz alta conforme levantava de sua mesa na Caixa.

Os colegas cochichavam em tom de censura para que ele falasse baixo, e olhavam à volta para tentar identificar se algum cliente o havia escutado conforme ele caminhava para fora da agência. Foi de cabeça erguida e iniciou o exame com toda a coragem. Foi quando a agulha saiu de sua veia que ele travou.

– Aí começou todo o filme pornográfico da minha vida, desde os oito anos de idade, começou a passar na minha frente. Eu tinha feito muita coisa, tinha morado em São Paulo. Eu tinha aprontado horrores em São Paulo.

Por que tinha ido fazer o exame? Exame idiota. Era melhor não saber! Com certeza seria positivo, depois de tudo que fez. Quando o resultado chegou: negativo. Beto passou a usar camisinha regularmente, não passaria novamente por esse sufoco. Mas a Aids daria um jeito de encontrá-lo. Para tal, o pegou em seu momento de maior vulnerabilidade: no amor.

O conhecera em São Paulo e estava cada vez mais apaixonado. Não era uma dessas paixões passageiras, era amor de verdade. Eles viveriam juntos, envelheceriam juntos, era para ser. Quando o namorado se mudou para uma cidadezinha do Triângulo Mineiro, Beto concordou com um relacionamento à distância. Duas vezes ao mês, Beto viajava de ônibus durante doze horas para ver o amado, que fazia o mesmo em finais de semanas alternados. A camisinha havia saído da equação há muito tempo.

Em um final de semana em que não se veriam, Beto resolveu fazer uma surpresa e apareceu em Frutal para visitar o namorado, que ainda se encontrava na loja de produtos agrícolas onde trabalhava. A gerente, desconcertada, não conseguiu impedir que Beto o pegasse com outro nos fundos da loja. Por ironia ou por safadeza mesmo, era um moço que conhecera em São Vicente enquanto visitava o Beto. A briga foi feia, o namoro se desfez, mas não sem que a cidade toda ficasse sabendo. Voltou a São Vicente com a dor que só uma traição pode causar.

 

Mudando de hábitos

A assembleia do Sindicato dos Bancários estava lotada. Beto entrou carregado por dois colegas. Estava magérrimo, as olheiras se fundiam à bochecha afundada, parecia que não aguentaria muito tempo. Todos os olhares se voltaram para ele, assustados. As pessoas cochichavam, Beto não conseguia caminhar sozinho. Esse sonho o atormentou repetidas vezes. Beto acordava ensopado de suor, apavorado, o sonho parecia tão real. Foi ao Secraids novamente, mas já sabia qual seria o resultado do exame. Quando foi informado, estava calmo, só concordou.

– Está tudo bem mesmo com o senhor? Não vai fazer nenhuma besteira?

– Não, estou calmo.

Ligou para os parceiros anteriores, mas nunca mais falou com o ex.

Outra certeza na vida de Beto é a de que a maconha salvou sua vida. A fumou pela primeira vez aos quinze anos de idade e foi amor ao primeiro trago. Nunca mais parou. O HIV (vírus da Aids) ataca o sistema imunológico do paciente, diminuindo a contagem de células T no organismo. Essas células são responsáveis pela defesa do organismo e, portanto, são as infecções e doenças oportunistas as mais perigosas para esses pacientes. Com o sistema imunológico comprometido, fungos e bactérias que não afetariam facilmente uma pessoa saudável, se tornam o pior pesadelo do soropositivo. Uma das oportunistas mais comuns é a candidíase, ou o famoso “sapinho”. Beto desenvolveu candidíase esofágica e teve grande dificuldade para se alimentar.

Conforme explica Chris Conrad, autor de “Hemp: O uso nutricional e medicinal da maconha”, é de suma importância que pacientes com Aids se alimentem: “O corpo reage à invasão do HIV da mesma forma que reage a queimaduras, tumores ou cirurgias. Ele demanda nutrientes a mais e, se necessário, começa a transformar as proteínas armazenadas nos próprios músculos do corpo. Os pacientes são instruídos a comer o suficiente para evitar a perda de peso, que ocorre em 98% dos casos de HIV. Para compensar, eles devem consumir quase o dobro da quantidade de proteínas que um indivíduo saudável ingere. Muitas pessoas com Aids relatam que melhoraram o apetite e ganharam peso depois que começaram a fumar cannabis”.

Beto chegou a pesar 34 quilos. Um médico deu bronca em sua mãe para que parasse de implicar com o baseado do filho.

– Ou você para de implicar com o cigarro de maconha dele, que é a única coisa que abre o apetite e, principalmente, mantém a comida lá dentro, ou ele vai falecer – disse o médico, preocupado com o estado de Beto.

Todos os médicos apoiaram o consumo da canábis.

Com a baixa imunidade e a dificuldade para se alimentar, outras infecções se seguiram. Beto teve uma febre de 41 graus e foi coberto por toalhas mergulhadas em água gelada. Foi quando entrou em coma, foi aposentado pela Caixa, e a sua vida mudou drasticamente.

– Olha, se um dia eu parar em algum lugar para prestar contas do que eu fiz aqui na Terra, se isso realmente existir, e perguntarem: “Qual foi a melhor coisa que aconteceu na tua vida?”, “foi ter contraído HIV”. O Santo vai desmaiar, mas vou falar isso mesmo. Foi ali que me forçou a mudar de direção, mudar pensamento. Eu provavelmente seria uma bicha velha lá no guichê. Com grana, ia ter grana, tal, tudo… eu ia continuar como eu era. Nunca fui do mal, mas era meu carro, minha calça, meu isso. E com a Aids o meu olhar passou de dentro para fora. Se eu olhar para a sociedade que eu vivo, a comunidade que eu vivo… tudo isso… de longe foi a melhor coisa que já me aconteceu.

 

California dreaming

A cidade de São Francisco, na Califórnia, EUA, é famosa pela neblina, a arquitetura pitoresca, as ladeiras e os homossexuais. Em uma época de grande preconceito, a acolhedora cidade recebeu a comunidade gay de braços abertos. A partir dos anos 1960, bairros inteiros se tornaram redutos gays, como o Castro, que oferece lojas, cinemas, bares e restaurantes direcionados a esse público. A epidemia de Aids atingiu São Francisco de forma devastadora.

Nos anos 1970, pouco se sabia sobre a doença. Médicos travavam uma batalha para tentar compreender o vírus e buscar tratamentos. O ativista pró-canábis e autor americano, Chris Conrad, conta de sua casa em uma cidade próxima a São Francisco, o que fez com que pacientes de Aids se manifestassem localmente:

– As pessoas lá começaram a notar que os pacientes que fumavam maconha não estavam tão doentes quanto aqueles que não fumavam. Isso fez com que as pessoas percebessem que a canábis tinha, realmente, valor medicinal.

Os portadores de HIV, em especial a numerosa população homossexual, foram grandes ativistas e estavam entre os primeiros grupos a se manifestar a favor do uso medicinal da canábis. Dale Gieringer, de sua casa em Berkeley, Califórnia, onde trabalha como representante da NORML, associação a favor de mudanças nas leis de drogas que envolvem a canábis, explica que São Francisco foi a primeira cidade a aceitar o uso medicinal da canábis. Ativistas como Denis Peron entraram rapidamente em cena e começaram a agir.

– Denis operava um clube de compradores de canábis em São Francisco, onde ele vendia maconha abertamente para pacientes. Ele era muito próximo de Harvey Milk, que foi o primeiro supervisor (cargo político) gay da cidade de São Francisco. O que aconteceu foi que Harvey Milk foi assassinado e a política tomou um rumo de direita. Denis teve que fechar o clube. Mas, ele tinha um grande círculo de amigos na comunidade gay, já nos anos 80, que estava muito bem organizada politicamente, e interessada no uso da canábis, sobretudo para a perda de apetite – explica Dale.

Em 1991, Denis Peron organizou uma iniciativa para legalizar o uso medicinal da canábis em São Francisco, recebendo 80% de aprovação da população. Outras cidades seguiram o exemplo. Em 1996, o estado da Califórnia aprovou a proposta 215, em favor da liberação do uso medicinal, com mais votos do que os que elegeram o presidente Clinton no estado.

Ainda assim, a pesquisa científica acerca do tema era dificultada pelo Governo Federal. A única fonte de canábis para pesquisa nos Estados Unidos vem de uma fazenda do NIDA (National Institute of Drug Abuse), no Mississippi. O médico e pesquisador Donald Abrams, em entrevista concedida a Julie Holland para o livro “The Pot Book” (2010), conta que demorou vinte anos para conseguir aprovação para suas pesquisas envolvendo canábis e Aids. O NIDA só liberava canábis para pesquisas que procurassem os efeitos nocivos da planta, e não o medicinal. Quando finalmente conseguiu a autorização, os pacientes com Aids prontamente aceitaram participar das pesquisas.

Além de ajudar os pacientes a controlar a perda de peso, a canábis também ajuda a reduzir a dor neuropática, que atinge cerca de 60% dos portadores do vírus. Os estudos indicaram uma redução de 34% da dor neuropática, além de aliviar outros sintomas, como dores de cabeça, câimbras na perna e fadiga crônica. Os estudos de Abrams demonstraram a segurança da administração da canábis em pacientes tão fragilizados como os de Aids, que têm baixa imunidade. Isso abriu caminho para a aprovação de novas pesquisas com diferentes enfermidades. Contudo, ainda há poucos estudos em humanos.

Hoje, na Califórnia, pacientes que recebem prescrição médica para o tratamento com canábis recebem uma carteirinha. Com ela, pacientes podem se dirigir a dispensários especializados em maconha medicinal, onde encontram uma variedade de produtos. As variedades de canábis vêm com informações sobre a espécie (sativa, indica ou híbrida), o balanço entre canabinoides (tipicamente a quantidade de THC em relação ao CBD) e quais variedades são mais úteis para cada tipo de enfermidade. Nos dispensários também se encontram comestíveis, como doces contendo canábis, manteigas e óleos medicinais; além de cápsulas, cremes de aplicação tópica (na pele) e outros medicamentos.

A maioria dos médicos ainda não tem expertise em canábis. Poucos sabem quais variedades funcionam melhor para quais enfermidades ou quais métodos de consumo são mais recomendados, a quantidade de cada canabinoide, etc. Ferramentas têm sido criadas para preencher esse vazio, uma delas é a Universidade de Oaksterdam, em Oakland, na Califórnia; a única universidade do mundo especializada em canábis. O coordenador, Aseem Sappal, compara a situação a dar a chave do carro, mas não ensinar a pessoa a dirigir.

– Essa é a importância da universidade – diz ele – é o único lugar onde as pessoas podem aprender a cultivar, cuidar, usar e até lidar com pacientes. Você não pode abrir um dispensário e um cliente de 50 anos chegar para consumir canábis medicinal pela primeira vez e você simplesmente dizer: “Toma aqui”. Essas pessoas precisam de informação, saber o que é melhor e mais indicado para elas.

A universidade também oferece aulas de cultivo, culinária, direito, história, entre outros assuntos relevantes ao tema.

Outra ferramenta hoje disponível é o site e aplicativo (para Android e IOS) Leafly, que fornece informações diretas dos usuários sobre as diversas variedades de canábis. O Leafly oferece informações como o sabor, aroma, efeitos negativos e positivos, além de quais sintomas cada planta ajuda a aliviar e quais pacientes estão usando quais variedades. Essa pode ser uma ferramenta útil ao leigo, que não conhece outros pacientes com a mesma enfermidade se medicando com canábis. O Leafly, porém, se encontra somente em inglês. No Brasil, as coisas têm andado um pouco mais devagar.

 

Ativismo do monstro marinho

Beto iniciou seu trabalho social fundando a ONG Hipupiara. A lenda do Hipupiara é típica de São Vicente, e pode ser melhor contada nas palavras de Beto:

– Diz que em 1564 vivia aqui em São Vicente uma indiazinha muito bonitinha, muito gostosinha chamada Irecê. Irecê era escrava do Capitão Baltazar… “escrava”… mas, o coração e o corpinho dela pertenciam, na verdade, a Andirá. Andirá era um índio que tinha um tacape famosíssimo. “Ai, o tacape do Andirá!”. E todas as noites eles se encontravam ali onde é a ponte pênsil hoje.  Ele vinha de barco dos manguezais, eles se encontravam e o amor acontecia. Até que uma noite, no caminho, ela encontrou uma bruxa. Ela falou assim: “Irecê, você está fazendo uma coisa errada, os seres do mar vão lhe castigar”. E ela tomou um susto, mas logo se lembrou do tacape do Andirá e falou assim: “Desculpa, tá? Tô atrasada”. Aí em uma outra noite de lua, quando ela chega no local de encontro ela vê o barco e o remo do Andirá e nada do Andirá.  De repente, ela ouve um urro pavoroso: “Aaaaarg”. Ela: “Meu Deus! Uma drag queen!”. Ela olhou e não era uma drag queen, era o Hipupiara, que em tupi-guarani significa monstro marinho.

O monstro pode ter sido uma foca ou um leão marinho que se perdeu na correnteza e veio parar em São Vicente. Irecê, assustada, chamou o Capitão Baltazar, que matou o monstro e o expôs em praça pública durante três dias. A lenda diz que o monstro engoliu Andirá. Fazia muito tempo que um monstro não amedrontava São Vicente, até a Aids vir à tona. A ONG Hipupiara auxiliava qualquer pessoa que tivesse contraído o HIV e organizava grupos de ativistas para exigir os direitos dos pacientes.

A primeira bandeira que Beto levantou no ativismo foi a dos efeitos colaterais.

– Antes de ter fundado a ONG, eu já comecei a sentir muito efeito. Eu comecei a tomar o coquetel em 96. Em 97 eu já estava com o meu rosto todo afundado. Os membros afinados, aparecendo veia e tudo. Eu estava achando que estava saltando a veia, mas não era. Era a gordura. A gordura que recobre… todo mundo tem uma capa de gordura. Essa gordura aqui, eu sou zerinho.

Para preencher o rosto, Beto implantou polimetilmetacrilato, que é injetado na pele e absorvido pelo organismo. O rosto afundado desapareceu, dando lugar a bochechas volumosas e de aparência saudável. A sua autoestima aumentou e ele se sentiu mais confiante. Ao pensar em todas as pessoas que não podiam pagar por esse procedimento, decidiu que ele deveria ser de graça, entregue pelo SUS (Sistema Único de Saúde). E lá foi Beto até Brasília incomodar o Congresso.

O tema ainda era tabu, ninguém queria falar sobre Aids. Dificilmente uma sessão abria com esse tema, então Beto organizou uma estratégia para ser ouvido. Sempre que ele via uma mesa cheia, entrava na sala. Quando abria para debate, ele pedia para falar, não importando qual fosse o assunto a ser discutido:

– Olha, desculpa, eu não tenho nada a ver com o assunto, mas eu estou aqui falando dos efeitos colaterais do coquetel – dizia, sob olhares de censura.

Beto diz que o governo evitava tocar no assunto para não assustar as pessoas e elas deixarem de tomar o coquetel. Mas as conversinhas, papos entreouvidos, todas as incertezas sobre o que era culpa do HIV e o que era culpa do coquetel, assustavam os pacientes ainda mais. Não havia certeza sobre nada, não havia informação competente.

Finalmente, em 2004, a portaria saiu. O diretor da sessão no congresso puxou Beto de lado e falou:

– Eu vou falar na mesa daqui a pouco, mas quero que você seja o primeiro a saber. Vai ser assinada uma portaria na semana que vem colocando o preenchimento e outras coisas no SUS.

Conquistas como essa são as medalhas de Beto, que nunca pediu nada em troca de seu trabalho na ONG. Em 2007, o Supremo Tribunal Federal abriu uma sessão para que teses sobre medicamentos de alto custo fossem defendidas por especialistas e entidades. Duas das teses escritas e representadas pela ONG Hipupiara foram selecionadas.

– A Associação dos Magistrados do Brasil de um lado, o presidente do Conselho Federal de Medicina de outro e eu. Hipupiara lindo ali no meio – diz Beto.

Gilmar Mendes, que presidia a sessão, chamou Beto para apresentar sua tese:

– Ouviremos agora, o Dr. Luiz Alberto Volpe.

– Presidente, apenas uma breve correção, se você me permite, eu não sou doutor, não.

Ele já tinha entrado na justiça duas vezes para conseguir o medicamento que precisava. A vagarosidade burocrática da Anvisa e do SUS deixavam muitos pacientes na mão. Novos medicamentos apareciam, mas demoravam para ser aprovados no Brasil e, por serem medicamentos altamente controlados, que não podiam ser vendidos, eram distribuídos pelo SUS, que ora demorava com a papelada, ora não tinha o remédio.

Cida tivera o mesmo problema com o Frisium de Clárian. Quando o SUS não tinha o medicamento, ela tinha que se virar para comprá-lo, para que Clárian não morresse pela própria abstinência do remédio tarja preta. Os medicamentos para Aids, no entanto, não estavam disponíveis para venda. Se faltar, faltou. O paciente teria que entrar na justiça e depender da morosidade judiciária. Beto não podia mais deixar isso acontecer. Defendeu um sistema que acelerava o processo de aprovação e facilitava o acesso aos medicamentos. As teses foram acatadas pelo Tribunal.

Beto é possivelmente a única pessoa do mundo a ter sua própria ponta de fêmur guardada em casa, em um vidrinho de geleia, preservado em éter. Ao virar o vidrinho de um lado para o outro, é possível enxergar a parte de dentro necrosada, parte do efeito colateral da medicação. A parte externa do osso não é lisa e redonda como deveria ser, apresenta diversas superfícies e angulações, como uma bolinha de papel amassado. Conforme o osso se deteriorava por dentro, o peso do corpo o comprimia e deformava, causando dores – como ele mesmo diz, em tom de ironia – “deliciosas”.

– Esse ossinho já foi esfregado na cara de três ministros. É isso aqui que é efeito colateral! Não é vômito, não é caganeira! É isso! – conta Beto, e prossegue rindo após notar meus olhos arregalados – A cara que você fez agora é a mesma que eles faziam.

A maconha o ajudou a superar a dor óssea até que o osso fosse substituído por próteses. A recuperação da cirurgia também não foi fácil. Beto só conseguia dormir depois de um baseado. Beto participou como palestrante de um evento na USP sobre o uso medicinal da canábis. Ele falaria logo após um doutor californiano, que declarou que a única dor que a maconha não conseguia aliviar é a dor óssea.

– Gente, antes de eu falar, – começou Beto – eu não tenho doutorado nem nada, mas eu tenho que discordar do colega da Califórnia…

Beto acredita que a maconha tenha um efeito analgésico indireto também, distraindo o usuário da dor para que pare de pensar nela momentaneamente.

– A gente alimenta muito a dor, – diz ele – se você para de alimentar, de pensar nela, ela diminui.

 

Sessão de terapia

Beto chegou na Santa Casa de Santos para a sua primeira sessão de quimioterapia e se deparou com um ambiente extremamente depressivo. Os pacientes estavam todos quietos, vivendo suas próprias agonias, contemplando aquele momento de incerteza. Uma enfermeira se aproximou dele e perguntou:

– E quando é que o senhor vai querer cortar o cabelo, Seu Luiz?

– Ué? Precisa? Não cai tudo sozinho?

O paciente vizinho riu do comentário. Beto encontrou ali uma abertura. Ele passaria dez meses em tratamento, precisava melhorar o humor da sala. Puxou conversa com o senhor que deu risada, e não demorou muito para as piadas começarem.

– Diz que a ruiva… a gente não pode mais falar de loira, então vamos falar da ruiva… a ruiva encontrou uma amiga que fazia tempo que ela não via e falou: “Menina! Você está um espetáculo! Perdeu aqueles quilinhos a mais, está enxutinha! E esse cabelinho curtinho, super fashion! Tá fazendo o quê?”. A amiga respondeu: “Quimioterapia”. E a ruiva: “Jura? Na USP ou no Mackenzie?”.

Os pacientes a sua volta entreouviam e davam risadas animadas.

– Qual é o melô do câncer de mama? – Beto cantarolava – Saudosa eterna Clara Nunes; Era um peito só; Cheio de promessa…

Mulheres mastectomizadas passaram a rir também. Não demorou muito para Beto fazer amizade com todos os pacientes da sala. Uma enfermeira se aproximou por trás de Beto e cochichou:

– Senhor Luiz, você não deveria contar essas piadas para esse tipo de gente.

– Meu amor, esse tipo de gente é igual a você, só muda a cor da roupa. A qualquer momento você pode estar do lado de cá. No começo da tarde tinha uma doença oprimindo todo mundo, agora está todo mundo tirando sarro dela.

O câncer apareceu pela primeira vez em 2003, e estava na medula, no pescoço, no pulmão, no fígado, no baço, no retroperitônio e na virilha. Sua imunidade estava ótima, não se tratava de uma oportunista; e Beto é o primeiro a ter câncer na família. Ele suspeita que esse tenha sido mais um efeito colateral da medicação.

Ele ficou surpreso com a quantidade de mulheres fazendo quimioterapia, eram muito mais numerosas. A sua última sessão caiu no dia 8 de março de 2004, Dia Internacional das Mulheres. Beto chegou com um buquê de rosas, e distribuiu as flores entre as mulheres. Uma senhora bem velhinha, ao receber a rosa, debulhou em lágrimas. Beto se assustou, mas ela logo explicou:

– Filho, essa é a primeira flor que eu ganhei na minha vida.

Beto pensou na sorte que tinha. Ele tinha uma família que o apoiava, convênio médico amplo que cobria aquilo que o SUS não oferecia, uma condição de vida favorável, teve oportunidade de estudar. As pessoas o viam como um exemplo de superação, mas ele tinha tanto a seu favor. Aquela senhora se tornou um de seus ídolos.

– Eu pensei: que merda de vida que essa mulher teve! – diz ele – E ela está lá, brigando por ela. Esses são os meus ídolos.

 

“Não antes da minha mãe”

O segundo câncer foi descoberto em 2008, durante uma cirurgia de hemorroida. O câncer estava no reto, parte final do intestino, o que levou a mais cirurgias e tratamento com radioterapia. Apesar de os médicos afirmarem não haver sequelas permanentes, o tratamento acabou com a vida sexual passiva de Beto. Diferente da quimioterapia, que ocorre a cada quinze dias, a radioterapia era feita diariamente. Fazer amizade foi muito mais fácil, encontrando as mesmas pessoas todos os dias no mesmo horário. Logo, as tirações de sarro começaram no Hospital do Câncer em São Paulo.

Ao notar que os médicos andavam para lá e para cá de jaleco e estetoscópio, inclusive fora do hospital, Beto não pôde deixar de protestar essa atitude um tanto quanto arrogante. No dia seguinte, apareceu de jaleco e estetoscópio.

– Se esse cara leva coisas pro hospital, de fora para dentro… – explica Beto – Ou pior! Levar coisa de dentro, que está passando por tratamento, está resistente, para fora. E o pessoal faz desfile de jaleco e estetoscópio no barzinho da esquina, na Caixa Econômica, no ponto de ônibus.

Um médico se aproximou e indagou a razão por que Beto, um paciente, andava para lá e para cá de jaleco no hospital.

– Não sei, doutor, – respondeu – deve ter alguma coisa muito perigosa na região porque vocês não tiram isso por nada. Eu estou me protegendo também.

Foi com esse bom humor que Beto foi sobrevivendo a uma série de tratamentos, efeitos colaterais e doenças oportunistas. Ganhou dois apelidos dos médicos: Robocop (devido aos implantes) e Highlander (em homenagem ao personagem imortal dos filmes e séries de mesmo nome).

– Eles dizem que pacientes com HIV vivem em média onze anos. Eu enfio os outros quatorze onde? – diz Beto.

Uma das palavras que mais odeia é “terminal”. Todas as vezes que os médicos explicavam para sua mãe que ele estava terminal, a mãe dava broncas nos médicos. Beto não suporta a ideia de sua mãe ter que lidar com sua morte:

– Terminal você entende o quê? Que não tem mais jeito, acabou. Isso faz um estrago na cabeça da pessoa.

Depois que o irmão e o pai faleceram, Beto adotou um mantra: “Não antes da minha mãe”. Sempre que se encontra em um momento crítico no hospital, ou a caminho dele, recita para si mesmo a frase, repetidas vezes.

– Ninguém merece perder dois filhos, pelo amor de Deus!

Paulo nasceu quando Beto tinha onze anos. Apesar da diferença de idade, se davam bem. Beto já tinha Aids quando Paulo foi diagnosticado com transtorno bipolar.

– Após três tentativas, na quarta ele conseguiu – conta Beto, a expressão sombria – em 2005 ele se matou. A gente não se recuperou até hoje. A partir de então eu me proibi de morrer antes dos meus pais.

 

A terceira certeza

– O meu nome é Beto Volpe, tenho HIV, sou homossexual, usuário de drogas e sou respeitado por isso tudo.

Ele faz questão de ser direto e não esconder nada sempre que dá entrevistas. Se comporta da mesma forma em suas palestras. Ele começa com uma parte mais teórica sobre a Aids, sem entrar muito em números específicos, e depois passa para o seu depoimento. Sempre com muito humor, usa pantufas de pata de dinossauro e outros assessórios cômicos para animar o ambiente. Já foi parar em todos os estados e uma porção de cidades para palestrar, nunca cobrando nada, só pede ajuda com transporte e um lugar para ficar. Ele ensina que a positividade é o atributo mais importante de um indivíduo para se proteger das situações mais desafiadoras, e que pode salvar vidas.

A canábis pode ter contribuído muito no seu caso.

– Ela me desestressa, dá uma relaxada – explica – você dá risada. É um estado diferente, o riso fica mais fácil. Você percebe a realidade a sua volta de outra maneira, mais engraçada, mais profunda.

Ele aprendeu muito, e continua aprendendo. A cada palestra, um lugar novo, pessoas novas, novas experiências. Ele divide o que o HIV o ensinou e tenta dividir esse aprendizado com quem quiser ouvir.

– No fundo eu acho que o HIV veio mostrar para todo mundo qual é o jeito certo da gente fazer. Tem que fazer exercício físico regularmente, alimentação balanceada, viver de uma maneira saudável, positiva, não esquentar muito a cabeça com problema. E a gente está tendo que fazer isso.

Assim Beto tenta levar a vida, sempre tirando coisas boas de situações ruins. E a principal certeza de sua vida:

– Rir é o melhor remédio. Eu não tenho dúvida disso.

 

*Essa história faz parte do livro “Ervas Daninhas”.

** Beto Volpe é autor do livro “Morte e Vida Posithiva”. Clique aqui para saber mais!

Clárian e a Canábis

Clárian CarvalhoA tela em branco do Google: tudo sempre começava por ali. A cada busca uma nova jornada por respostas. Ela precisava saber, entender o que afligia sua filha; o que outros fizeram; quais eram os tratamentos experimentais. O que os médicos recomendavam; o que os pais recomendavam? Degenerativo? Como retardar o progresso da doença? Neurológico? Raro? Poucas opções. Poucos sobreviventes. O que fizeram os sobreviventes? Alternativas? Falsos positivos? Exames diagnósticos?

Foram dez anos assim, sem diagnóstico. A cada suspeita, uma busca. A cada busca, um desespero. Um médico chegou a ameaçar:

– Se você não parar de ir procurar no Google, eu não vou mais te falar quais são as suspeitas.

Não tinha jeito. Maria Aparecida, mais conhecida como Cidinha, – mas que por razões de praticidade a chamo de Cida – não conseguia se segurar. Precisava saber o que fazer, como agir. Ela delineava os próximos passos em sua mente, enquanto fazia as pesquisas. Trazia os resultados para os médicos, pedia opiniões e sugestões. Por vezes, chegava aos prantos no consultório, assustada com o que havia encontrado. A frase mais comum: “Não tem cura”. Foi a Dra. Maria Teresa Chamma que desconfiou da verdadeira doença pela primeira vez. E lá foi a Cida sentar em frente ao Google.

Síndrome de Dravet, digitou. Os resultados não eram nada promissores. Em meio ao caos de informações, textos científicos, notícias, imagens na cor roxa, grupos de pacientes e soluços, Cida encontrou a Charlotte. O artigo da CNN estava em inglês, mas Cida identificou a palavra Dravet e decidiu jogar o texto no Google Tradutor. Conforme lia o texto traduzido palavra por palavra, ao pé da letra, de difícil compreensão, mas razoavelmente inteligível, Cida começou a sentir seu coração palpitar. Tratava-se de uma animação que não sentia há tempos. Voltou ao artigo, um vídeo acompanhava a matéria. O vídeo era simples, um “antes e depois” bem ilustrativo. A Charlotte antes da canábis era uma garotinha letárgica, convulsionando a cada 25 minutos, chorando, mas sem conseguir falar ou andar. O olhar da menina de quatro anos não acompanhava nada, ela era um casco vazio, quase um fantasma. A Charlotte atual era outra pessoa, o vídeo a mostrava andando de bicicleta (com rodinhas, é claro). Cida sentiu a esperança explodir dentro de si. Havia uma chance de salvar a Clárian.

 

– A Clárian era um bebê muito bonzinho – disse Cida, sentada a uma mesa do Starbucks – ela estava sempre sorrindo.

A mesa ficava em um corredor do shopping Tatuapé, na zona leste de São Paulo. Evandro, filho mais velho de Cida, levara Clárian para almoçar enquanto Cida e eu conversávamos.

– A única coisa que eu percebi antes de ela ter a primeira crise, foi que eu fazia assim para ela no berço – Cida moveu os braços como se fosse pegar um bebê – e ela olhava para uma mão, olhava para a outra, e não levantava os bracinhos.

Ao comentar com o pediatra, o médico não achou estranha a reação de Clárian.

– Cada bebê se desenvolve de um jeito – dizia.

Aos cinco meses de idade, no entanto, Clárian teve sua primeira gripe. O instinto de mãe fez com que Cida trouxesse a Clárian para dormir com ela.

– Eu fiquei com dó de deixar ela dormir no berço – diz ela.

Cida é bancária e trabalhava no Bank Boston, hoje Banco Itaú. A licença maternidade havia terminado e ela queria ficar mais com a filha quando estivesse em casa. Já em seu quarto, Cida percebeu que a temperatura da Clárian estava subindo. Preocupada com a febre do bebê, resolveu levá-la para a sala, onde seu marido, Fábio, assistia à televisão. Sob a iluminação da sala de estar, Cida notou um movimento estranho nos olhos da filha.

– O olhinho dela ficou assim: pra lá e pra cá, pra lá e pra cá – diz Cida – eu nem imaginava que aquilo era uma convulsão.

O desespero começou quando os lábios de Clárian começaram a roxear. Enquanto Fábio fazia respiração boca a boca, Cida pegava Evandro, então com nove anos, em seu quarto. Correram todos ao pronto-socorro. A médica não disse nada, pegou o bebê e a levou correndo para dentro. Clárian estava tendo uma parada respiratória.

– Não tenho nem palavras para descrever como foi para nós – diz Cida, entre um soluço e outro – ela não conseguiu nem pegar a veia dela, porque o acesso dela é muito difícil. Quando ela voltou, e demorou muito para ela voltar, a Clárian estava com uma agulha bem grossa no osso da perna. Foi o único acesso que conseguiram, o acesso no osso. Eu fiquei muito impressionada com tudo aquilo. Ela precisava de UTI urgente e lá não tinha UTI.

Ficaram então, pai, mãe e irmão aguardando uma ambulância, mas a ambulância não veio. Todas as que são equipadas para UTI estavam ocupadas e Clárian não poderia ser transferida em uma ambulância qualquer. Aguardaram e continuaram aguardando, até que, pela manhã, Cida ligou para a chefe, para avisar que não poderia ir trabalhar. Explicou o que estava acontecendo e, para o seu alívio, enviaram uma ambulância do banco, pertencente ao corpo de bombeiros, para transferir a Clárian. A ambulância estava devidamente equipada e chegou rapidamente, levando a família para o hospital São Luís.

No caminho, Clárian teve outra crise, seguida de uma parada respiratória. Uma crise atrás da outra, médico atrás de médico. Nada parecia ajudar. Os médicos declararam que ela não iria resistir. E assim foi, nos próximos dez anos. A cada crise severa uma corrida ao hospital; a cada internação as más notícias: “Você tem que se preparar”, “ela não vai resistir”, “ela não vai andar”, “ela não vai falar”. Os médicos sempre vinham acompanhados de um psicólogo, que estava lá com a única função de preparar os pais para a morte da filha. Aos dez anos de idade, Clárian passara por dezessete internações (os pais só contam as internações de mais de vinte dias, já não sabem mais por quantas internações mais curtas ela passou), sete em UTI, onze pneumonias, três paradas respiratórias. A cada visita ao hospital, Cida era preparada para a morte iminente da filha, sem que os médicos soubessem explicar o que ela tinha. Depois das primeiras vezes, Cida desistiu de responder ao psicólogo. Apenas concordava, mas tinha uma resposta pronta em sua mente:

– Não! Algum jeito tem que ter! Eu não vou ficar parada – ela pensava.

Para tentar descobrir o que Clárian tinha, foram feitos muitos exames. Para compreender o motivo para sua hipotonia (problema para controlar a temperatura do corpo), foi feita uma biópsia do músculo do braço – em que parte do músculo é removida para análise – que deixou uma cicatriz. Clárian também passou por inúmeras máquinas de ressonância; raio x; aparelhos que dão choque para ver como o músculo reage; exames de sangue; exames de urina; exames de todos os tipos.

O desenvolvimento de Clárian foi lento e os medicamentos a deixavam dopada. Ela precisou de fisioterapia para conseguir sustentar sua cabeça e poder sentar, depois para engatinhar e assim por diante. Quando começou a ir para a escola, teve dificuldades para se concentrar.

– O topiramato tira muito a concentração. A Dra. Teresa nem quer aumentar mais a dose porque ela já tem um atraso na escola. Você percebe que ela tem um atraso cognitivo – explica Cida.

Diversos medicamentos foram experimentados para ver qual se adaptava mais à condição da Clárian. Sem diagnóstico, era uma questão de controlar as convulsões e ver o que a ajudava. Encontrar uma dosagem também não era fácil, pois era necessário encontrar um equilíbrio entre os efeitos benéficos e os efeitos colaterais. Um medicamento chamado Trilepital acabou desencadeando ainda mais crises generalizadas em Clárian. O depakene, um anticonvulsivante, teve que ser substituído ao danificar os rins de Clárian; por pouco ela não teve que passar por hemodiálise. Outros efeitos assustavam Cida de tempos em tempos. Uma vez, quando estava trabalhando, recebeu uma ligação da escola:

– A gente não sabe o que está acontecendo com a Clárian. Ela não está andando.

Cida correu para a escola e levou Clárian ao hospital. A sua cabeça se enchia com as possíveis doenças degenerativas. Estaria Clárian perdendo movimentos?

– Ela não parava em pé, ficava mole – diz ela.

Depois de uma série de exames, a resposta: Clárian estava simplesmente dopada. O medicamento foi retirado do tratamento e ela voltou a andar. As convulsões, no entanto, continuavam ocorrendo com frequência, até dezessete por dia. Quando a Dra. Teresa suspeitou que fosse síndrome de Dravet, recomendou um medicamento que não estava autorizado pela Anvisa, o keppra. Os pais de Clárian tiveram que importar o remédio sem receita por, digamos, rotas alternativas. Deu certo: as crises diminuíram.

Clárian passou a tomar o keppra duas vezes ao dia; frisium, uma vez por dia; gardenal, também uma vez; e o topiramato, duas vezes ao dia. São medicamentos pesados, controlados e caros, mas diminuíram as crises para uma a cada dez dias. Clárian estava melhor do que nunca (mais tarde, no entanto, as convulsões aumentaram novamente para cerca de 15 por mês). Agora, restava o diagnóstico. Um exame genético era necessário, mas ele não existia no Brasil. A Dra. Teresa, mais uma vez, apareceu com uma solução:

– Ela ficou sabendo de uma amiga dela, que estava fazendo uma tese de doutorado na Unicamp sobre o Dravet, – conta Cida – então ela nos indicou.

 

Até que ponto?

A família Carvalho foi de carro até Campinas fazer os exames, onde o sangue foi recolhido tanto de Clárian quanto dos pais. O estudo precisava de 200 voluntários que, como eles, teriam material genético colhido para análise. A família foi informada que os resultados demorariam a sair, já que o estudo precisava atingir o número pretendido de voluntários e dependia de verbas. Mais uma vez, os Carvalho aguardaram, pacientemente. Dois anos depois, no entanto, as crises de Clárian começaram a se intensificar. Clárian demorava muito para se recuperar das convulsões, que se tornavam cada vez mais severas. Por vezes, as contrações musculares em suas pernas eram tão fortes que elas alcançavam a cabeça. A paciência de Cida começou a se esgotar. Cada vez com mais frequência, Cida ligava para o setor de pesquisas da Unicamp, perguntando sobre o resultado do estudo.

– Ainda está em andamento – respondiam.

Nesses dois anos, Cida não parou de pesquisar sobre o Dravet. Ela já havia mandado o artigo sobre a Charlotte para a Dra. Teresa e perguntou se podia continuar enviando o que encontrasse. A neurologista concordou e Cida enchia o inbox de seu Facebook com artigos científicos e outras informações sobre o uso da canábis no tratamento da Síndrome de Dravet. Convencida da evidência, a Dra. Teresa declarou em uma das consultas da Clárian que viajaria aos Estados Unidos, para uma conferência sobre o uso medicinal da canábis. Emocionada, Cida abraçou a médica.

– Quando eu voltar, na mesma semana eu quero ver a Clárian – a médica pediu.

Cida continuou tentando ligar para a Unicamp, sem obter novidades. Em sua próxima consulta com a Dra. Teresa, Cida suplicou:

– Doutora, por favor, me ajuda. Tenta falar com a sua amiga.

Teresa se dispôs a ajudar, mas não conseguiu:

– Ela não está mais fazendo a tese, saiu. Eu perguntei e ela disse que não estava mais lá, não tinha mais acesso – disse.

Em uma de suas passagens pelo hospital, conversando com uma enfermeira, Cida conseguiu uma informação. A enfermeira disse conhecer uma moça chamada Camila, que trabalhava com a Dra. Iscia, que fazia parte da pesquisa. Cida pediu o contato dela e conseguiu um e-mail. A resposta finalmente veio: a investigação estava concluída e bastava aguardar em uma fila para receber o resultado dos exames. Quanto tempo? Ninguém sabia dizer. Mais uma vez a família aguardou. O próximo contato de Cida não foi tão amigável:

– Mas, espera aí! A minha filha está tendo crises! Nós nos prontificamos a levá-la, colhemos sangue. Eu só preciso saber: sim ou não! É só o que eu preciso.

– Não dá. Nós não damos a resposta assim, tem uma fila. A senhora precisa aguardar.

Era junho de 2013. O aumento de vinte centavos na tarifa do ônibus havia irrompido protestos no país inteiro. Imagens de cidadãos sendo atacados com gás lacrimogênio e jornalistas sendo atingidos por balas de borracha enfureceram a população. Logo, milhões estavam nas ruas. A avenida Paulista ora parecia uma grande festa, ora um campo de batalha. Sentindo-se abandonada e desprezada por aqueles que a deveriam ajudar, Cida só queria se juntar à multidão, gritar de raiva, mostrar a sua insatisfação. Em uma quinta-feira de protestos, ela estava decidida a engrossar o mar de pessoas que marcharia pelo centro da cidade.

– Eu estava de saco cheio! – afirma Cida, lembrando-se do telefonema que fez do escritório naquele dia.

Decidida a tomar as rédeas da situação, Cida ligou para o Genoma e pediu informações sobre como fazer o teste diagnóstico pago para síndrome de Dravet, que na época já estava disponível. Ela sabia que não sairia barato e que talvez demorasse, mas não podia mais esperar pela pesquisa, precisava de um plano de tratamento para a Clárian.

– O teste demora um mês para sair e o preço é quinze mil reais – disse a voz do outro lado do telefone.

Quinze mil reais. Cida desligou o telefone, caminhou até sua mesa, sentou, apoiou o rosto nas mãos e caiu aos prantos. Precisou ser acudida pelos colegas de trabalho, sua pressão sanguínea subira e ela estava em pânico. Ela não tinha quinze mil reais e, devido aos problemas financeiros que enfrentava, não podia fazer um empréstimo, pois já estava endividada. Desprovida de forças, não conseguiu ir à manifestação.

Nos próximos meses, Cida e Fábio se dedicaram a encontrar formas de quitar as dívidas e conseguir um empréstimo. Na pressa, contudo, acabaram ainda mais endividados.

– Tudo que você faz sem pensar – explica Cida – você quer atingir um objetivo e acaba se dando mal. Eu me dei mal financeiramente, mais ainda. Estou me recuperando agora.

Sentindo-se em um beco sem saída, Cida continuou ligando para a Dra. Iscia, atrás de respostas. Ela ligava para o centro de pesquisas e pedia pela doutora, mas sempre diziam que ela não estava. Cida perguntava quando ela estaria, para que retornasse a ligação, e sempre que recebia uma data ou um horário, ela retornava. No entanto, a resposta era a mesma: “Ela não está”. Até que, algumas semanas antes do Natal, Cida recebeu a informação de que a Dra. Iscia estaria presente, à uma hora da tarde, com toda a certeza. Cida ligou às 13h; ligou às 13h15; ligou às 13h30; ligou às 13h45 e ela não estava. Ligou novamente às 14h15 e recebeu uma resposta definitiva:

– Olha, ela não veio.

– Como assim? Ela não está, não está e agora não veio? – indagou Cida, já pronta para desabafar – Agora você vai me ouvir!

Cida jogou toda sua angústia no funcionário ao telefone, contou tudo o que estava acontecendo com a Clárian, sobre as crises, as dificuldades, as dúvidas. Contou que sua saúde também não era mais a mesma. A cada crise de Clárian, Cida sofria junto com a filha, sua mão fechava apertada até as unhas encravarem na palma da mão, enquanto ela tremia de medo. Cida sentia o corpo todo doer depois que as crises passavam, de tão tensa que estava. Fábio diz que Cida convulsiona junto com a Clárian. Ela suplicava por ajuda:

– Por favor, você vai ter que me ajudar. Eu não estou te pedindo, eu estou suplicando. Você tem noção do que é isso? Ela só precisa disso, para a médica dela correr atrás de um remédio mais potente.

– Tá bom – o atendente não conseguiu mais negar ajuda – espera só um pouquinho.

Em instantes, outra voz apareceu na linha.

– Pois não – disse a Dra. Iscia.

Já mais calma, Cida começou a explicar o que tinha dito ao atendente. A médica a escutou, pacientemente.

– Eu não posso ficar nessa fila, porque as crises da minha filha não podem esperar.

– Eu não posso fazer nada, você tem que esperar a fila – disse a doutora, calma.

– Eu não posso esperar a fila! Eu não posso esperar! – Cida se controlava para não aumentar o tom de voz, sua voz saía como um grito abafado – Eu tentei pagar particular, mas não consigo, são quinze mil reais.

– Eu sei que é esse valor. É por isso que a gente está desenvolvendo essa pesquisa aqui na Unicamp.

– Então, por favor, me ajuda! Eu não estou pedindo um quebra-galho, é a vida da minha filha!

– Eu vou tentar fazer alguma coisa por você. Você pode vir aqui, ou eu falo com a sua neurologista.

– Eu vou agora, se você quiser.

– É melhor eu falar com a neuro, pede para ela me mandar um e-mail.

– Você vai responder mesmo? – desconfiou Cida.

– Vou.

Até hoje, Cida não sabe para que servia a tal da fila, mas a resposta finalmente veio. Na mesma semana em que Maria Teresa voltava dos Estados Unidos, Cida levou Clárian para uma consulta. Era dia 20 de dezembro, mas Cida sentiu como se o Natal já tivesse chegado. Ela recebeu o diagnóstico da filha e uma notícia que renovou suas esperanças:

– Eu fiquei de boca aberta, Cidinha – disse Teresa, satisfeita – as crianças com síndrome de Dravet tratadas com canábis estão ótimas. Ótimas! Eu não estou nem aí para o que vão pensar, o que vão falar. Eu vou levantar a bandeira da canábis junto com você. Nós vamos atrás disso e eu vou te ajudar.

As lágrimas escorriam pelo rosto de Cida enquanto ela agradecia a médica repetidamente. A esperança novamente se acendeu dentro dela; havia onde se apoiar, alguém com quem contar. Cida não podia estar mais feliz.

 

A canábis

Agora que tinha um diagnóstico, Cida podia contar aos médicos, quando levava Clárian ao hospital, exatamente o que ela tinha. No entanto, isso não parecia ajudar.

Família de Clárian na Marcha da Maconha em São Paulo.

Família de Clárian na Marcha da Maconha em São Paulo.

– Dra.. o quê? – perguntavam os médicos.

A situação logo mudou. A revista Super Interessante publicou uma edição especial sobre a canábis, na qual o principal artigo tratava do uso medicinal. Em março de 2014, a matéria sobre o caso de Any Fischer, menina de quatro anos com epilepsia refratária que foi tratada com sucesso usando óleo de cânhamo em Brasília, desencadeou uma mudança radical no comportamento da imprensa. No segundo semestre de 2013, a revista Veja havia publicado uma longa matéria sobre os malefícios da canábis, sem fazer qualquer menção a possíveis benefícios. Mesmo os artigos sobre casos do uso medicinal salientavam os efeitos negativos da planta. Na mesma época, contudo, o documentário “Weed”, de Sanjay Gupta, médico consultor da CNN, que tinha Charlotte Figi como protagonista, havia sido lançado. Ao ser disponibilizado no Youtube, o documentário atingiu o mundo todo e, em um esforço conjunto de ativistas, legendas foram adicionadas em dezenas de idiomas. Em 2014, quando muitos médicos mal conheciam a doença, o mundo começava a aprender a pronunciar a palavra “Dravet”.

Diversos casos começaram a aparecer na mídia brasileira. Em abril, quase todos os veículos traziam novidades sobre o uso medicinal da canábis. A planta parecia recém-descoberta, uma novidade científica. O vídeo “Ilegal”, da campanha Repense (iniciativa de Tarso Araújo, a campanha visa defender o uso medicinal da canábis e informar a população sobre o assunto) sobre o caso de Any, foi lançado no Youtube e se tornou viral. Os dramáticos casos de epilepsia se destacavam constantemente nos jornais, revistas e noticiários televisivos, até que, finalmente, Katiele Fischer (mãe de Any) apareceu no Fantástico. Depois disso, não demorou muito para que ela conseguisse uma autorização especial para a importação do óleo de cânhamo.

O cânhamo é um tipo de canábis comumente usado na produção de fibra vegetal. A planta cresce até seis metros de altura, e tem uma concentração mais baixa de canabinoides. O governo americano aprovou a produção de extrato de canábis que fosse feito com cânhamo, com no máximo 0,6% de THC, uma quantidade muito baixa, que não dá barato. Como há pouco dos outros canabinoides também, para obter o CBD, os produtores espremem uma grande quantidade da planta até conseguir um óleo que possa ser usado como medicamento. E assim surgiu o RSHO (Real Scientific Hemp Oil), da empresa HempMed. A Anvisa passou a autorizar a importação desse óleo para as mães que provavam na justiça que seus filhos não respondiam a nenhum outro tratamento disponível.

Sob forte pressão da mídia, a Anvisa abriu um canal por onde pais pudessem enviar a documentação de seus filhos e adquirir autorização para importar o medicamento. A burocracia, claro, era enorme e a autorização demorava a chegar. Diversos pais tentavam fazer essa importação de forma ilegal, para ao menos saber se o tratamento funcionaria com seus filhos, antes de passar por toda a burocracia da Anvisa. Foi o que fez a família Carvalho.

Um amigo da família viajaria a Miami. Cida comprou o medicamento online e pediu que a entrega fosse feita no hotel em que o amigo estaria hospedado. Ele enfiou o óleo na mala e o contrabandeou ao Brasil com sucesso. A chegada do óleo coincidiu com a Marcha da Maconha em São Paulo, no dia 26 de abril de 2014. Cida havia perdido a chance de acompanhar as manifestações do ano anterior, mas não perderia dessa vez.

Às 4h20 da tarde de sábado, a marcha iniciou a caminhada. A concentração havia sido no vão do Masp; a multidão caminhou em direção ao centro, descendo a Rua Augusta e, em seguida, a Rua da Consolação, terminando o trajeto na Praça Roosevelt. A Polícia Militar afirma que havia três mil pessoas acompanhando a marcha, enquanto o coletivo Marcha da Maconha declara que havia mais de dez mil. A linha de frente era formada pelo bloco de usuários medicinais. Segurando cartazes e faixas, Cida e Fábio seguiam acompanhados do farmacêutico Paulo Orlandi-Mattos, da Unifesp, o professor e pesquisador de história da USP (Universidade de São Paulo), Henrique Carneiro, Maria Antonia Goulart, entre outros pacientes e ativistas. A família Carvalho foi toda recrutada para participar, vestindo camisetas estampadas com a cruz vermelha sendo completada por uma folha de canábis, e uma borboleta lilás, que representa a síndrome de Dravet. Até mesmo a Clárian participou da concentração, mas não acompanhou a marcha para evitar grandes aglomerados de pessoas, que podem desencadear crises.

Cida encontrou outras mães de crianças com epilepsia, como a Ariane Maldonado, cujo filho recém-nascido se encontrava internado no Hospital Alvorada, sofrendo crises graves. Ariane vestia uma camiseta estampada com a foto do bebê, Leonardo, acompanhada da frase: “O Leonardo também tem direito ao CBD”. Na Marcha da Maconha de 2014, pela primeira vez, não houve confronto com a polícia.

Mais tarde, após a marcha, Clárian tomou as gotinhas do óleo de canábis rico em CBD pela primeira vez. Nos próximos 13 dias, a Clárian não teria crises. Para ter uma visão clara da eficácia do produto, Cida e Fábio montaram uma tabela, anotando o número de crises e qualquer outro efeito que notassem em Clárian. Em abril, Clárian teve doze crises; em maio, sete; em junho, três crises; em julho, Clárian teve uma crise, e os espasmos haviam diminuído em 90%. Pela primeira vez, Cida notou que Clárian estava suando: ela conseguia controlar melhor a temperatura corporal. Ela não mais ficava sentada o tempo todo, com o olhar vazio; ela estava mais esperta, brincava mais, até dançava e cantava, algo que nunca fazia. Na escola, Clárian começou a copiar palavras da lousa. O medicamento, de fato, funcionava. O único efeito colateral claro era a sonolência, devido ao efeito sedativo do CBD. Cida também notou que nas duas primeiras semanas Clárian ficou um pouco agressiva, mas esse efeito passou.

O problema, no entanto, além de receber autorização da Anvisa, era arcar com os custos de importação do óleo.

– A princípio, ele sai US$500 você trazendo ilegal. Cada seringuinha daquela é US$500. Minha filha tem 11 anos; pelo peso, altura, isso e aquilo, precisava de três seringuinhas daquela. Então, isso ia passar a US$1.500. Se eu transformar isso em reais, com toda a burocracia que me foi pedida pela Anvisa… tudo bem, consegui a receita, a prescrição. De tudo o que pediram eu fui atrás, mas isso aí ia se tornar R$8.700 – explica Fábio.

Não podendo arcar com os custos, mais uma vez, a família Carvalho não sabia o que fazer para dar continuidade ao tratamento de Clárian.

Em linhas tortas

A canábis é o que se costuma chamar de “mato”. Ela cresce rapidamente e em qualquer lugar, quase qualquer clima. O óleo também pode ser facilmente fabricado, em casa, sem muitas complicações. É claro que é necessária uma certa prática para se produzir um óleo de qualidade e manter os canabinoides preservados, mas é uma alternativa para quem não pode comprar o óleo pronto. Cida e Fábio passaram a defender a liberação do cultivo de canábis para fins medicinais.

No entanto, o discurso da mídia foi se moldando no decorrer de 2014, quando a palavra “maconha” passou a ser substituída por “CBD”. Os termos mais comuns eram “derivado da maconha”, “uma das mais de 400 substâncias presentes na maconha”, “extrato de CBD”, “óleo de CBD”. A mensagem foi se modificando e a impressão que se tinha era de que se podia extrair o CBD e descartar o resto, que somente o canabidiol possuía valor medicinal, sem o risco do nefasto THC. A ideia foi toda simplificada: o CBD é bom e a canábis continua sendo ruim, má. A mídia parecia ignorar o fato de que a maior parte das pesquisas científicas havia identificado valor terapêutico no THC, para diversas enfermidades. Além disso, o óleo que as mães brasileiras estavam usando para medicar os filhos continha uma variedade de outros canabinoides e terpenos, substâncias presentes em qualquer planta de canábis.

Jason explica que o CBD isolado não é eficaz para todos os casos. É preciso verificar caso a caso qual é o melhor equilíbrio entre os canabinoides. No caso de Jayden, a planta Charlotte`s Web – cepa nomeada em homenagem à garotinha Charlotte, que possui apenas 1% de THC – não funciona. Jayden usa variedades com uma concentração um pouco maior de THC. No entanto, para Charlotte, a sua planta funciona perfeitamente. Pais preocupados em causar “barato” nos filhos acabaram se posicionando contra, no entanto, a liberação de THC. Outros, preocupados com o risco de abuso, se posicionaram contra o cultivo, e preferem comprar um medicamento produzido pela indústria farmacêutica. Outros, como é o caso de Cida e Fábio, acreditam que o cultivo seja a melhor solução, já que muitas famílias não poderiam pagar por medicamentos industrializados.

A essa altura, os pais de Clárian já estavam em contato com centenas de famílias de pacientes que contavam com a liberação do CBD. Famílias do Brasil inteiro entravam em contato umas com as outras, formando uma rede. Em pouco tempo, havia chats, grupos de discussão no WhatsApp e grupos no Facebook em que pais e mães conversavam, sugerindo dosagens e formas de se obter o medicamento. Sem suporte da justiça ou da medicina, esses familiares eram seus próprios médicos, seus próprios advogados e comunicavam entre si as novidades. Salas de jantar se tornaram quartéis generais, onde pais aflitos se reuniam para discutir formas de ação.

Não demorou muito, no entanto, para que as divergências de opinião ameaçassem separar os grupos. Quando o médico e pesquisador da USP de Ribeirão Preto, José Alexandre de Souza Crippa, que faz parte de um grupo de especialistas que pesquisam canabinoides há décadas, começou a reunir voluntários para participar de testes clínicos que comprovassem a eficácia do CBD nos casos de epilepsia, uma exigência foi feita: os pais que quiserem ter seus filhos participando do projeto, não podem estar envolvidos em ativismo. Isso assustou Cida, que pensou muito sobre o assunto. Ela tinha fotos na Marcha da Maconha e estava envolvida com ativistas, que a ajudavam muito. Sentiu-se excluída ao ouvir, ainda, comentários de outras mães chamando ativistas de “maconheiros” e cultivadores de “jardineiros” com profundo desprezo, afirmando não querer qualquer envolvimento com eles. Diante de alegações de que ativistas a favor do uso recreativo estavam usando as crianças para alcançar a legalização da erva para fins recreativos, Cida recuou. Estava excluída da pesquisa.

Algumas mães tentaram convencê-la a apagar as fotos, cancelar sua página no Facebook, a “Síndrome de Dravet Brasil”, e a pensar na Clárian. Cida se viu forçada a escolher entre ter acesso ao medicamento de sua filha e desistir de seus princípios. Ela havia sido ajudada por ativistas que também usavam a erva medicinalmente, mas que precisavam do THC. Ela havia sido ajudada por advogados e até médicos a favor do uso recreativo, que não pediam nada em troca de seus serviços. Ela precisou rever valores morais até então simplificados em sua mente, mas que agora emergiam com tal complexidade que nada mais parecia fazer sentido.

Quando criança, Cida conviveu com um parente usuário de drogas. Cresceu com a certeza de que drogas eram ruins e, portanto, deveriam permanecer proibidas. No entanto, ela recorda com clareza que a mãe sabia identificar, quando o parente aparecia em casa, qual droga ele havia utilizado. Quando ele chegava agressivo, agitado e não comia, ela dizia:

– Hoje ele cheirou cocaína.

Quando ele chegava calmo e sentava com a família para jantar, a mãe comentava:

– Hoje ele fumou maconha.

Cida sabia a diferença entre as drogas, mas a canábis era agora a salvação para sua filha e, como pôde perceber, para milhares de outras pessoas. Ela resolveu participar de um grupo de pesquisa que não a discriminava, ou os outros pacientes, – e que não a forçava a determinar com clareza o complexo limite entre o que seria uso medicinal e o uso recreativo – e se encontrou com o Dr. Faveret, no Rio de Janeiro. O neurologista criou a APPEPI (Associação de Parentes de Pacientes com Epilepsia), onde reuniões com familiares de pacientes aconteciam para organizar um pedido de autorização de plantio da canábis para fins científicos. No entanto, o processo era longo e Cida precisava conseguir acesso ao medicamento de outra forma, antes que o óleo que havia contrabandeado acabasse.

Cida conseguiu então o contato de uma pessoa que mudaria por completo a sua situação: Dr. Eusébio.

**Essa história não acaba aqui, ela faz parte do livro “Ervas Daninhas”. Postarei mais em breve!**

A Mão de um Fantasma

No inverno de 2011, uma coisa não saía da cabeça de Jason: uma arma. Qualquer pistola serviria. Seria rápido e indolor. Uma bala no cérebro significaria o fim de todo o sofrimento; um alívio e uma paz que ele não sentia há anos. Os gritos de seu filho ecoavam distantes enquanto Jason contemplava essa ideia. Com as hospitalizações de Jayden se tornando frequentes, aquele pensamento – a silhueta de uma pistola contra a têmpora – se tornava cada vez mais tentador. No entanto, aqueles mesmos gritos que o levavam à loucura, o traziam de volta a si.

Precisava se concentrar. Não podia abandonar o filho. Em meio a uma das numerosas crises diárias de Jayden, de quem agora os gritos soavam nítidos e reais, Jason compreendeu que precisava de ajuda. Ligou para a mãe:

– É hoje, mãe, – ele tentava explicar, entre soluços, o que se passava – eu não consigo mais. Acabou, mãe. Acabou.

Sabendo exatamente do que se tratava, a avó de Jayden se viu implorando ao filho que fosse à igreja e se concentrasse em suas preces. Jason não havia largado a fé, continuara frequentando as mesmas igrejas, Shelter Cove e St. George, sempre que Jayden se encontrava estável. Em um domingo de missa, ele pediu por um sinal. Sabendo da situação em que Jason se encontrava, o pastor pediu para que todos orassem por Jason e Jayden, e intensificou suas preces pedindo a Deus que lhes mandasse um sinal:

– Não daqui a um mês, não daqui a uma semana. Jason precisa de um sinal hoje, Senhor, um sinal amanhã!

Jayden tinha apenas algumas semanas de vida.

 

O Dravet

Jayden nasceu com o gene SCN1A, imperceptível até sua primeira crise, aos quatro meses de idade. As primeiras convulsões eram do tipo grande mal, o que significa perda de coordenação motora e fortes contrações musculares, visíveis mesmo que aconteçam por debaixo da roupa. Aos dois anos de idade, ele passou a ter também convulsões clônicas, causando movimentos involuntários. Seis meses depois, Jayden tinha todos os tipos de convulsões existentes. As crises aconteciam diariamente e quase o dia todo. Os pais o levavam de um médico a outro, tentando descobrir o que ele tinha, sem sucesso.

Um teste genético finalmente concluiu o diagnóstico: Síndrome de Dravet, a forma mais severa de epilepsia conhecida. A síndrome costuma se manifestar em crianças antes de elas completarem um ano de idade. Não existe cura e os tratamentos podem ou não ajudar a diminuir as crises. Como a Síndrome de Dravet é uma doença rara – a cada 30 mil crianças, aproximadamente, uma nasce com o gene – não há muito investimento por parte da indústria farmacêutica em pesquisa, já que o retorno financeiro não compensaria os gastos. Os tratamentos disponíveis, portanto, funcionam na base da tentativa e erro.

Após o diagnóstico, que já é difícil de se obter (foram quase dois anos de testes e consultas no caso de Jayden), a busca pelo tratamento certo se torna uma corrida contra o tempo. A cada crise a criança se aproxima mais rapidamente da morte, já que as convulsões causam danos cerebrais irreparáveis. Jayden teve paradas cardíacas em algumas de suas crises e precisou ser ressuscitado no hospital. Fazer ressuscitação cardiopulmonar em Jayden enquanto espera pela ambulância não era bem a ideia de Jason para um programa pai e filho. A doença não só paralisa a vida da criança, ela devasta a família. Não é à toa que muitos pais não aguentam a pressão e acabam se divorciando. O que também foi o caso de Jason e sua mulher.

Aos quatro anos de idade, Jayden já tinha experimentado todos os tratamentos disponíveis no mercado. Jason já havia procurado tratamentos naturais, dietas, quiropratas, mas nada parecia funcionar. Jayden tomava 22 pílulas diárias, remédios que acabaram por debilitá-lo ainda mais. Uma das pílulas, o clobazam, remédio comumente usado para a síndrome de Dravet e outras formas de epilepsia, tem como possíveis efeitos colaterais: problemas na visão, tontura, perda de coordenação muscular, sonolência, nervosismo, pensamento anormal, agitação, ansiedade, mudanças de comportamento, confusão, convulsões (!), depressão, batimento cardíaco irregular, alucinações, falta de memória… e essa não é nem metade da lista.

Os remédios impediam Jayden de dormir, comer e o garoto chorava durante horas por medo das alucinações, entre outros efeitos desagradáveis. Aos quatro anos e meio de idade, Jayden não falava, não andava, não mastigava. Tudo o que ele fazia era chorar e gritar. As convulsões só haviam aumentado e ele tinha até 500 contrações musculares severas por dia. Jason saía correndo da loja de joias onde trabalhava como gerente quase todos os dias, pois seu filho se encontrava em uma ambulância.

Dois dias depois de ir à missa pedindo por um milagre, o primeiro sinal apareceu. Ele caminhava para o trabalho quando recebeu uma ligação da loja, dizendo que o chefe lhe concedera quatro meses de folga. Os outros funcionários haviam mandado uma carta ao dono da loja pedindo para que Jason pudesse ficar mais tempo com seu filho e se concentrar somente nisso. O pedido fora concedido.

O segundo sinal não demorou a aparecer. Um adolescente de 15 anos havia sido pego fumando um baseado na escola e estava suspenso. O noticiário local resolveu aproveitar o gancho para fazer uma matéria sobre drogas na escola. No entanto, na entrevista, uma revelação: o menino afirmava que fumava maconha para controlar suas convulsões. Os pais não sabiam dizer se ele estava dizendo a verdade.

Essa reportagem ficou martelando na cabeça de Jason e ele resolveu pesquisar mais a fundo. Acabou descobrindo que a maconha tem canabinoides anticonvulsivos e antiespasmódicos. Também acabou conhecendo o CBD (cannabidiol), componente da cannabis que é neuroprotetor e antioxidante, justamente o que poderia ajudar e proteger Jayden. Ficou surpreso, ainda, ao descobrir que o governo dos Estados Unidos aprovou a patente de número 6630507, sobre o uso de canabinoides como o CBD para efeito de neuroproteção e antioxidante. No entanto, o governo americano mantém a canábis na primeira categoria de drogas perigosas restritas, junto com a heroína e o LSD. As substâncias dessa categoria são consideradas extremamente perigosas, com alto potencial de abuso e nenhum valor medicinal aceito. Alguma coisa não estava fazendo sentido.

Ele tinha uma consulta médica em São Francisco e resolveu perguntar ao médico o que ele achava disso tudo. O conselho foi de tal flexibilidade que renovou as esperanças de Jason:

– É uma questão de vida ou morte agora, não custa tentar.

Convencer a família não seria tão fácil. Após obter o óleo de canábis em um conta-gotas de 3 gramas, Jason demorou duas semanas para tomar coragem. A mãe dizia:

– Você vai matar o seu filho! Dar maconha a uma criança no estado dele? Está louco?

De qualquer maneira, Jayden estava morrendo e Jason não tinha nada a perder. Quando finalmente colocou as três gotinhas debaixo da língua de Jayden, Jason passou, pela primeira vez, um dia inteiro com seu filho sem que ele tivesse uma crise. Passaram-se mais quatro dias sem nenhuma convulsão. Para Jason, era um milagre.

 

Uma revolução

O suposto milagre faz parte de nossa história há milhares de anos. O neurologista Ethan Russo, especialista em canabinoides, menciona em “Clinical Cannabis in Ancient Mesopotamia: A Historical Survey with Supporting Scientific Evidence” que os antigos mesopotâmios já usavam, desde o início da civilização, “um unguento tópico usado no tratamento de um mal antigo chamado Mão de Fantasma, que atualmente acredita-se que seja a epilepsia, incluindo a cannabis como um de seus principais ingredientes” (Russo apud Bennet, 2010, p.20).

Já no século XIX, o cirurgião da companhia das Índias, William B. O`Shaughnessy, recolheu informações sobre o uso medicinal da canábis pelos indianos e chineses. Segundo Chris Conrad, no livro “Hemp: O uso medicinal e nutricional da maconha” (1997), “O`Shaughnessy estabeleceu sua reputação ao aliviar a dor do reumatismo e aplacar sucessivamente as convulsões de uma criança com essa nova e estranha droga. Eventualmente ele popularizou seu uso na volta à Inglaterra. Seu êxito mais conhecido veio quando ele abrandou os dolorosos espasmos musculares do tétano e da raiva com a resina”.

Se todas essas informações, entre outros usos terapêuticos da canábis em seus mais de cinco mil anos de história conhecida já estavam por aí, por que Jason, em 2011, foi o primeiro a tentar esse tratamento com a Síndrome de Dravet? Jason se fez essa mesma pergunta centenas de vezes.

A princípio, quando iniciou o tratamento de Jayden, não poderia estar mais feliz com os resultados.

– Era o paraíso, sabe? Todos os dias em que Jayden está bem é como um paraíso.

Aos poucos, foi tirando Jayden dos medicamentos tradicionais, e os resultados foram ainda melhores:

– Eu tirei o stiripentol e ele parou de gritar; eu tirei o topomax, ele tomava 10 pílulas de topomax por dia, ele começou a mastigar e a correr. Ele não andava antes e ele começou a correr depois disso! Depois eu tirei o depakote e ele começou a compreender. Então eu tirei um pouco do clobazam, estamos nos últimos miligramas de clobazam, mas é muito difícil tirar dele. Ele sofreu muito com as crises de abstinência.

As crises de abstinência são comuns em remédios tarja-preta, pois eles causam dependência física. Jason foi removendo aos poucos, nos últimos anos, cada um dos medicamentos. Ele diz estar começando a conhecer Jayden pela primeira vez.

– Está me custando 22 pílulas para descobrir quem meu filho realmente é. Mal posso esperar para conhecê-lo de verdade.

Jason conseguira salvar a vida do filho e queria que outros pais soubessem sobre sua descoberta. No entanto, quando buscou mais informações e percebeu que a sua descoberta não era assim tão inédita, mas que poucos sabiam sobre ela, pensou em todas as famílias, todas as crianças que perderam suas vidas devagar, sofrendo, e ficou muito decepcionado.

Tentar passar a informação adiante também não foi nada fácil:

– Todos os pais que estão agora lutando em todos os estados eram contra mim no início – afirma ele, referindo-se aos pais que estão tentando conseguir acesso à canábis medicinal em estados americanos onde ela ainda é ilegal – Eu era expulso de todos os grupos de pacientes, todas as reuniões de Dravet, eles achavam que eu era um louco. Agora todos eles são grandes defensores da maconha medicinal.

Jason não recebeu pedidos de desculpas, mas ficou feliz com o resultado. Da pequena cidade de Modesto, na Califórnia, ele iniciara uma revolução que atingiria proporções mundiais. Desde que começou o tratamento de Jayden, diversas famílias têm feito o mesmo. Paige Figi, que salvou a vida da filha, Charlotte, com uma planta de canábis com alto teor de CBD, descobriu através de Jason o que fazer. A CNN tornou o caso de Charlotte famoso e o conhecimento sobre o uso pediátrico da canábis foi se espalhando pelo mundo até chegar aos ouvidos atentos de Maria Aparecida Felício de Carvalho.

 

**Essa história não termina aqui e faz parte do livro “Ervas Daninhas”. Postarei mais em breve!**

Para mais informações sobre a maconha medicinal, adquira o livro “O Uso Medicinal da Canábis“.

A corrida milionária pelo mercado do CBD

As recentes resoluções do CFM (Conselho Federal de Medicina), de apoiar o uso compassivo do CBD, e da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), de reclassificar o CBD como uma substância que possa ser prescrita por médicos indicam pouco avanço na luta pelo direto de usar a canábis medicinalmente. As mesmas decisões, entretanto, significam um grande sinal verde para empresas interessadas em explorar o mercado do canabidiol, e a indústria já tem se movimentado. Enquanto alguns pacientes declaram que os extratos industrializados de CBD fazem maravilhas, outros reclamam do preço abusivo e até duvidam da qualidade desses produtos. Será esse o caminho mais seguro a ser seguido? Será o favorecimento da indústria um mal necessário? Ou estaremos colocando pacientes em uma situação ainda mais complexa?

Se você está de alguma forma envolvido com o movimento pelo uso do CBD medicinal, já deve ter ouvido falar em empresas com os nomes: HempMeds, Dixie, Medical Marijuana Inc., KannaWay, KannaVest, KannaLife, etc. Essas empresas se especializaram em vender “hemp oil”, ou “óleo de cânhamo”, que segundo o rótulo é rico em CBD e contém uma quantidade insignificante de THC, inferior a 0,3%. Na verdade, todas essas empresas são dirigidas pelo mesmo grupo de pessoas, uma combinação interessante entre traficantes e pessoas sendo investigadas por diferentes tipos de fraude. Essas empresas fingem se associar e comprar ações umas das outras para que sejam valorizadas e consigam investidores. O mais interessante é que essas empresas funcionam de um sistema de pirâmide, que vende mais para seus colaboradores do que para o público externo, e funcionam à margem da legalidade nos Estados Unidos.

Uma pesquisa elaborada pela associação Project CBD, nos Estados Unidos, trouxe à tona sórdidas revelações sobre o funcionamento dessas empresas, que chegam ao Brasil através da HempMeds Brasil. Como a HempMeds não tem autorização para vender medicamentos, os óleos de cânhamo que produzem são vendidos como suplementos alimentares, mas a empresa faz uso de “buzz marketing” para fazer uma publicidade focada em pacientes que precisam do CBD, sobretudo crianças. Funciona da seguinte maneira: os representantes da HempMeds oferecem o caro RSHO (Real Scientific Hemp Oil) de graça para pais de crianças com epilepsia refratária, com a condição de que eles contem para outros pais os benefícios do produto, postem vídeos sobre o tratamento de seus filhos e passem a palavra adiante. Como 10 gramas do produto chegam a custar 599 dólares, sem contar as taxas e impostos da importação, muitos pais ficam felizes com o acordo, sobretudo se o remédio tem ajudado seus filhos. A empresa, portanto, consegue uma propaganda com relativamente nenhum custo para empresa, para vender um produto para fins que ela não tem autorização (ou controle de qualidade), usando pais e pacientes desesperados. A prescrição desses produtos importados foi apoiada pela CREMESP (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) e pela CFM.

Existe um problema fundamental na produção do óleo de cânhamo: o cânhamo não é a melhor fonte de CBD. Trata-se de uma variedade da canábis comumente utilizada na fabricação de fibra vegetal, para a produção de tecidos, combustível, óleo de motor, mobília, etc. O cânhamo possui uma concentração mais baixa de canabinoides e, portanto, é necessária uma grande quantidade de planta para produzir algumas gramas de óleo. O cânhamo também tem a propriedade de absorver toxinas e metais do solo e, portanto, se for utilizado para consumo, deve ser plantado em solo orgânico, sem adição de pesticidas. Não se sabe ao certo de onde vem o cânhamo utilizado nos produtos da HempMeds; há rumores de que seja importado da China ou da Romênia. Grandes plantações de cânhamo, especialmente voltada para a produção de fibra, não tomariam precauções como utilização de solo orgânico, fertilizantes naturais e a não utilização de pesticidas, por uma questão de praticidade e custo. Dessa forma, há uma preocupação sobre a qualidade e a segurança do RSHO. Há relatos de crianças e adultos que tiveram fortes cólicas abdominais após consumir o óleo, que teve algumas amostras analisadas como contendo quantidades altas de metais pesados e hexano, um solvente industrial tóxico.

Apesar do duvidoso funcionamento das empresas produtoras de óleo de cânhamo, que tem sido erroneamente chamado no Brasil de óleo de CBD, o governo americano concedeu à KannaLife, em 2012, uma patente de número 6630507, que lhes assegura direitos exclusivos sobre a produção de medicamentos à base de canabinoides. Trata-se de uma licença exclusiva para a empresa desenvolver drogas para o tratamento de encefalopatia hepática (danos cerebrais causados por doenças do fígado).

Diversos pesquisadores, sobretudo médicos como Paul Armentano e Sanjay Gupta, defendem que a melhor fonte de CBD são as variedades de canábis ricas em canabidiol, como a Charlotte`s Web, a Harletsu e a Avidekel. Primeiro porque os efeitos do CBD são potencializados pelo THC, ainda que em quantidades baixas – a Charlotte`s Web, por exemplo, possui menos de 1% de THC. Além disso, a presença de outros canabinoides e terpenos (substâncias vegetais) que também possuem valor terapêutico podem auxiliar no tratamento do paciente. Essas plantas também são fontes mais seguras de CBD, pois com a alta concentração do canabinoide, pouca planta é necessária para a produção do medicamento, permitindo um controle maior sobre o produto e diminuindo o risco por intoxicação por agentes externos.

Muitos pacientes precisam de uma quantidade maior de THC para responder ao tratamento com extratos de CBD. O americano Jason David afirma que seu filho, Jayden, que possui síndrome de Dravet, não melhorou ao utilizar plantas com baixa concentração de THC, mas conseguiu se livrar de mais de 90% das convulsões com plantas com uma porcentagem moderada de THC. Liberar somente o CBD, portanto, exclui essas crianças da possibilidade de melhora. Outro grupo de pacientes que acaba sendo excluído nessa decisão são os que precisam de alta concentração de THC, como pacientes com câncer e esclerose múltipla – e isso inclui crianças. A liberação do CBD apenas, portanto, beneficia de forma limitada um número limitado de pacientes.

A demanda é suficiente, no entanto, se o valor cobrado pelo medicamento for alto, para trazer lucros significativos à indústria. A GW Pharmaceuticals, empresa produtora do Sativex (spray de extrato de THC), está em contato com a Anvisa desde antes das decisões de reclassificação do CBD, segundo Maurício Cândido de Souza, porta-voz da empresa. No ano passado, enquanto a Anvisa postergava ao máximo a tomada de decisão em relação ao CBD, a GW realizava testes clínicos envolvendo um novo medicamento chamado Epidiolex, com altas concentrações de canabidiol purificado. Os testes em crianças com epilepsia refratária têm apresentado bons resultados, mas ainda faltam estudos para que o medicamento chegue ao mercado. Esse medicamento pode não vir, no entanto, com um preço acessível. A importação do Sativex, por exemplo, conforme apurado pelo site Smoke Buddies (smkbd.com), pode custar mais de 30 mil reais, como já acontece em outros países. O preço deve diminuir quando a empresa entrar no mercado brasileiro, mas continuará sendo alto para a realidade da maior parte das famílias brasileiras.

Segundo o médico e pesquisador José Alexandre de Souza Crippa, será papel dos pacientes exigir da justiça o barateamento desses produtos. Portador de patentes de CBD sintético, Crippa defende o uso do canabinoide sintetizado ou purificado. Ele deve anunciar em março seus planos para a produção de um CBD sintético no Brasil, em parceria com a indústria farmacêutica. A questão é: por que os pacientes deveriam aguardar as pesquisas, o lançamento de produtos que podem não funcionar tão bem quanto o produto natural, para depois brigar na justiça para que esses produtos sejam acessíveis a todos quando poderiam plantar variedades de canábis ricas em CBD virtualmente de graça?

Um estudo realizado em Israel, em 2014, por Ruth Gallily e colegas, comparou os efeitos terapêuticos do CBD isolado e a planta Avidekel, que é rica em CBD, mas também contém uma série de outros componentes naturais. A pesquisa constatou que a canábis em sua forma natural é mais eficiente do que o CBD em sua forma isolada no tratamento de doenças inflamatórias. Não faz sentido, portanto, conceder o direito de monopólio de medicamentos a base de canabidiol para empresas que pretendem vende-lo da forma mais lucrativa possível, se isso significa um medicamento menos eficiente do que sua própria matéria-prima.

A reclassificação do CBD, portanto, não é beneficial para a maior parte dos pacientes; favorece empresas que visam o lucro; abre margem para empresas que se aproveitam desse momento de transição e funcionam de maneira duvidosa, colocando em risco pacientes sem muita opção; permite que pacientes sejam “usados” para o interesse particular de alguns; mantém os preços de produtos à base de CBD lá no alto; e impedem famílias e pacientes de plantar a obra-prima de seus tratamentos, favorecendo o monopólio da indústria. O mais preocupante é impressão de que “o problema está resolvido”, amenizando o apelo de ativistas e da mídia em favor de pacientes. O problema está longe de ser resolvido, e a luta pelo acesso ao tratamento com canábis toma novo fôlego e continua.

Maior processo da história da canábis medicinal em cheque

A Medical Marijuana Inc., empresa da qual a Hemp Meds é subsidiária, abriu processo na justiça em busca de uma indenização de 100 milhões da instituição sem fins lucrativos Project CBD. Segundo a documentação do processo, o relatório “Hemp Oil Hustlers”, resultado de uma pesquisa da Project CBD sobre a Medical Marijuana Inc. e empresas relacionadas, deixou propositalmente de citar o resultado final de um teste laboratorial feito com uma amostra de RSHO, principal produto da empresa, a fim de prejudicá-la.

A alegação, no entanto, não é verdadeira. O relatório menciona tanto o resultado que a Medical Marijuana Inc. chama de preliminar, indicando presença de metais pesados no RSHO, quanto o resultado final, indicando os níveis de metais pesados dentro dos padrões aceitáveis. A seguir, o trecho do relatório “Hemp Oil Hustlers” no original em inglês e a tradução para o português (a questão é tratada entre as páginas 17 e 19 do relatório):

“The initial results appeared to confirm [that] the RSHO contained high levels of several heavy metals, including nickel, selenium, molybdenum, arsenic, and silver. A few days later, Stewart Environmental Consultants issued a second report that contradicted its earlier findings: Five numbers, all pertaining to heavy metal toxins, were changed from unsafe to safe levels.”

Os resultados iniciais pareciam confirmar que o RSHO continha altos níveis de diversos metais pesados, incluindo níquel, selênio, molibdênio, arsênico e prata. Alguns dias depois, Stewart Environmental Consultants (laboratório onde o teste foi realizado) publicou um segundo relatório contradizendo os resultados anteriores: cinco números, todos relacionados a metais pesados tóxicos, foram alterados de níveis não seguros para níveis seguros.

O relatório “Hemp Oil Hustlers” questiona as motivações que levaram o laboratório a duvidar do primeiro resultado e a usar o mesmo cientista para fazer a segunda análise, já que é protocolo que outro cientista realize o segundo teste quando o primeiro é considerado insatisfatório. Eles também questionam o motivo pelo qual somente os resultados negativos divergiram no segundo teste.

O processo encaminhado pela Medical Marijuana Inc. não menciona outro teste laboratorial realizado pela Project CBD e citado em seu relatório sobre a empresa, que acusava a presença de solventes químicos tóxicos. A Medical Marijuana Inc. também não refutou nenhuma das outras alegações presentes no relatório, como as práticas administrativas duvidosas da empresa e os processos de fraude nas quais seu corpo administrativo está envolvido.

Por que estaria uma empresa multimilionária processando uma instituição sem fins lucrativos por 100 milhões de dólares com uma acusação sem base? A Project CBD acredita que a Medical Marijuana Inc. esteja tentando convencer seus clientes e investidores de que as acusações feitas são falsas, legitimando-se com processos como esse. A Medical Marijuana Inc. afirma que foi prejudicada pela Project CBD e acusa Martin Lee, responsável pelo dossiê da empresa, de maliciosamente conspirar contra ela, com intenção de interferir com uma prospectiva vantagem nos negócios.

A Project CBD abriu recurso na justiça para que o processo não seja julgado. Se o processo seguir em frente, será a primeira grande batalha legal no mercado da maconha medicinal.

Leia “Hemp Oil Hustlers” na íntegra: http://www.projectcbd.org/news/hemp-oil-hustlers-a-project-cbd-special-report-on-medical-marijuana-inc-hempmeds-and-kannaway/

Leia o processo aberto pela Medical Marijuana Inc.: http://www.projectcbd.org/wp-content/uploads/2015/04/37-2014-00036039-CU-DF-CTL_ROA-8_01-16-15_Amended_Complaint_1430360415996.pdf

Leia o recurso solicitado pela Project CBD: http://www.projectcbd.org/wp-content/uploads/2015/04/98806258_v-1_2015-04-28-Defendants_-Anti-SLAPP-Motion-to-Strike.pdf

 

Hemp Meds agindo ilegalmente no Brasil?

Envolvida em diferentes escândalos nos Estados Unidos, a Hemp Meds – ou Midway Meds, como às vezes gosta de ser chamada – tem agido de maneira inconsistente com a legislação brasileira e as regras da Anvisa para a comercialização e  marketing de produtos. A afirmação a seguir foi retirada da página da Midway Meds no Facebook:

“A Midway Meds tem como missão “Desenvolver, produzir, comercializar e distribuir medicamentos com base em CBD de mais alta qualidade e confiabilidade, promovendo saúde, segurança e bem-estar à população”.”

O grande problema nesta frase está na palavra “medicamento” e nas expressões: “promovendo saúde, segurança”. Conforme afirma a própria Hemp Meds, a empresa não produz medicamentos, pois não efetuou os testes necessários para a aprovação de um produto farmacêutico, seja ele fitoterápico ou não. Não há prova de eficácia e segurança para que esses produtos sejam farmacêuticos. Nos Estados Unidos, os produtos da Hemp Meds, Midway Meds e todas as outras subsidiárias são vendidos como suplemento alimentar.

A seguir, printscreens do site americano, que foi bloqueado para acessos no Brasil (quando se tenta acessá-lo do Brasil, o internauta é automaticamente encaminhado para o site brasileiro):

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O site afirma que a FDA (Anvisa americana) não avaliou os produtos da empresa com a intenção de tratar, diagnosticar ou curar doenças. Esses “medicamentos”, portanto, não são medicamentos e a empresa não pode alegar que são. As regras da Anvisa não são diferentes da FDA:

“A inspeção nas linhas de produção de medicamentos é um meio para comprovar seu funcionamento em acordo com padrões que garantem a qualidade dos produtos. Na inspeção, a linha de produção deve estar condizente com a descrição detalhada do processo de produção e com as metodologias de controle de qualidade nas diferentes etapas. O perfil de segurança e eficácia é obtido por meio da análise dos ensaios clínicos (fase 3) de produtos novos ou da revisão bibliográfica de utilização em diferentes subgrupos populacionais em produtos de uso tradicional.”

Os produtos da Hemp Meds não passaram por nenhum desses processos no Brasil. Assim, ao afirmar valor medicamentoso sem uma licença de marketing obtida junto ao órgão competente, a ação da empresa pode ser qualificada como propaganda enganosa.

Já no site brasileiro, onde o usuário pode comprar os produtos, a empresa é um pouco mais cuidadosa, mas ainda assim sugestiva. Sempre que alega valor medicinal, o site usa a palavra “CBD”, ou “canabidiol”, evitando o link direto entre o produto e o uso como medicamento. Ainda assim, imagens de médicos e informações sobre as “famílias RSHO”, que usaram o produto com fins terapêuticos, passam a mensagem de que se trata de um produto farmacêutico. O site, no entanto, possui um discreto link para a página da Hemp Meds no Facebook, onde constam as seguintes informações:

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A empresa parece se beneficiar da rara fiscalização e denúncia de desvio de conduta que acontece no Brasil. As páginas do Facebook podem ser rapidamente removidas caso haja alguma reclamação ou processo, e a Hemp Meds dificilmente será punida.

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Atitudes como essa demonstram quão irresponsáveis podem ser as atitudes de corporações internacionais em busca de lucro. Diversas famílias confiam na qualidade dos produtos da Hemp Meds e na transparência da empresa, que parece tentar confundir o público, ora se referindo a seus produtos como alimento, ora como remédio.

Sobre Drogas e Remédios

i227974No dia 15 de janeiro de 2015, atendi o celular sem reconhecer o número na tela. O Dr. José Alexandre Crippa nunca havia me passado seu número de celular, insistia no número do escritório onde eu nunca o encontrava. Meses após tentar entrevistá-lo – sem sucesso – Crippa me ligava em meu celular, educadamente perguntando se eu tinha tempo para ouvi-lo. Teria ele mudado de ideia? Por que, de repente, uma jornalista independente, sem qualquer vínculo com uma grande emissora, valia uma ligação? Quem sabe a decisão da Anvisa no dia anterior em reclassificar o CBD tivesse liberado seu stress e sua agenda e ele finalmente poderia me conceder aquela entrevista.

Ele me chamou pelo nome, Susan, e começou a falar, soava animado. Crippa dizia não poder estar mais feliz com a decisão da Anvisa. Era hora de colocar as mãos na massa, dizia. Entranhei o tom familiar com que me contava essas coisas, mas continuei ouvindo, ainda tentando compreender o propósito da ligação. Ele estava no aeroporto de Brasília, aguardando seu voo, e me contava sobre seus planos, os próximos passos a serem tomados. Estava muito contente em anunciar uma parceria com um laboratório europeu e que viajaria em breve a Edimburgo para buscar 1 kg de CBD.

“CBD natural ou sintético?”, perguntei, ainda confusa, mas curiosa. Ele pausou por um segundo, não esperava a pergunta, mas resolveu explicar. “É um semissintético”, disse. “E você pretende fazer testes clínicos com ele?”, perguntei em seguida. Crippa explicou que testes clínicos não seriam necessários, ele usaria o medicamento em pacientes para registrar os resultados; já estava tudo encaminhado. Ele disse algo sobre eu ter sido selecionada, junto com outros. Ele sabia quem eu era? Me chamara pelo nome, não podia estar me confundindo com outra pessoa ou ter ligado no número errado. Prossegui com minhas perguntas: “Mas, se as crianças com epilepsia têm usado extratos naturais, com outros canabinoides, não é possível que o CBD isolado não funcione?”.

Crippa então me explicou que esse era um argumento usado para enganar as pessoas: “Tem um grupo de pessoas que querem legalizar o recreativo e são contra o puro, porque aí cai o argumento deles”. Decidiu usar os irmãos Stanley (donos de um dispensário no Colorado) como exemplo, afirmando que eles têm uma “fabriqueta quase artesanal” e que eles usam o argumento de que o THC é necessário por interesse comercial, já que o produto que eles têm possui cerca de 1% de THC. Crippa explicou que, como o produto deles é natural e, portanto, impuro, eles têm interesse em publicar que outros compostos são necessários.

Ele disse ainda que muitos usam o argumento de que há um “efeito comitiva” (efeito em que os componentes de uma planta, após ela ter sido consumida, interagem entre si no organismo humano, agindo de forma diferente desses mesmos componentes isolados) no produto natural, mas que isso não é aceito na academia. Segundo ele, não há provas científicas desse efeito, já que todos os estudos foram feitos com CBD isolado. Como os dispensários não conseguem fabricar o CBD isolado, porque sai muito caro, eles se posicionam contra. Todos os estudos sérios – e Crippa exemplifica aqui seus estudos usando o CBD isolado para o tratamento de Parkinson – foram desenvolvidos com componentes isolados.

Dr. Crippa então declarou, com ar triunfante, que “estamos muito próximos de ter um sintético no Brasil”. Haveria uma coletiva de imprensa em março para anunciar avanços nesse sentido. Ele assegurou que testes seriam necessários e que ainda levaria um tempo para ter tal medicamento disponível. Para que testes assim fossem desenvolvidos, precisaríamos de um sintético, já que “como não tem patente, o canabidiol não é de interesse da indústria farmacêutica”. Uma parceria com a indústria seria necessária para desenvolver os caríssimos testes clínicos, já que, nem eles em Ribeirão Preto (USP) conseguiriam arcar com esses custos, mesmo que obtivessem lucro no resultado.

Ele tem toda a razão. A indústria farmacêutica não tem qualquer interesse em fitoterápicos. Plantas não podem ser patenteadas, seus extratos podem ser produzidos por qualquer pessoa e, portanto, não há lucros bilionários a serem alcançados. Componentes sintéticos são outra história, mas são moléculas novas produzidas em laboratório e precisam de todo tipo de testes para serem aprovadas. O processo pode durar dez anos, talvez menos tempo se for acelerado. Uma das patentes de Crippa (de 2014) é o CBD fluorado, uma molécula me-too. Essas moléculas tendem a fazer a mesma coisa que a molécula que imitam, mas, por causa desse flúor que foi pendurado nela, pode ter interações diferentes no organismo, como aumentar ou diminuir a potência de seus efeitos. Estaria o médico contando com a pressão de pacientes desesperados na justiça e na imprensa para acelerar a aprovação de sua droga? Crippa disse ainda que os pais e pacientes podiam pressionar as autoridades para que o medicamento, depois de disponível, ficasse mais barato. Medicamentos recém-lançados, no auge de sua patente, costumam ser caros.

Ele voltou então a explicar que os extratos naturais eram perigosos, por dois motivos. O primeiro deles é que “ficamos preocupados com as impurezas”. Segundo o doutor, até mercúrio já foi encontrado nesses extratos importados. Ele diz não saber se os rumores são verdadeiros ou não, mas que há uma série de contaminantes nesses produtos, especialmente os vindos da China. Outro motivo para não aprovar os extratos naturais é a presença do THC. Segundo ele, o THC, em grandes quantidades pode causar convulsões nas crianças. Lembrei-me de ter ouvido esse argumento antes, não de estudos científicos (não há nada na literatura acadêmica indicando que o THC possa induzir convulsões, mas sim que o composto tem grande potencial para tratar doenças convulsivas), mas de mães assustadas. Crippa dizia que várias crianças que usaram medicamentos com THC voltaram a ter crises convulsivas violentas. Teria sido ele o responsável por espalhar esse rumor?

Exemplo de estudo indicando que a canábis tem efeito positivo em pacientes com convulsões:

http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2376682/?page=3

Ele também explicou que o THC em crianças pode aumentar a probabilidade de esses pacientes desenvolverem esquizofrenia, fazendo questão de citar o mesmo estudo sueco que cita em suas entrevistas. Essas conclusões são o que chamamos de “Bad Science”. Estudos que verificaram a relação entre o uso de canábis e esquizofrenia foram desenvolvidos (para simplificar bastante) de duas formas: contando quantos esquizofrênicos foram expostos ao uso da canábis ou quantos usuários de canábis desenvolveram esquizofrenia. De fato, há uma relação, já que muitos usuários de canábis desenvolvem esquizofrenia. Isso pode significar que a canábis causa esquizofrenia ou que pessoas com tendência à esquizofrenia têm propensão ao uso de drogas, sobretudo a maconha. Estudos longitudinais, no entanto, verificaram que o aumento no número de usuários de canábis na população não está relacionado a um aumento no número de esquizofrênicos. Ou seja, a relação entre a canábis e a esquizofrenia não é causal.

No entanto, alguns estudos concluem que a exposição à canábis leva ao aparecimento de esquizofrenia pacientes que de outra forma não a desenvolveriam. Alguns chegam até a determinar a relação entre a dosagem e a probabilidade dos sintomas psicóticos ocorrerem. É a ciência da imaginação. Podemos correlacionar qualquer coisa desta forma. O site de Tyler Vigen dá diversos exemplos disso, demonstrando que as conclusões mais absurdas podem surgir da má interpretação estatística. O link abaixo, por exemplo, mostra a correlação entre o número de afogamentos em piscinas e o número de filmes em que Nicolas Cage aparece. Podemos concluir que os filmes de Nicolas Cage causam afogamentos?

http://www.tylervigen.com/view_correlation?id=359

Temo que Crippa saiba disso tudo. Um estudo desenvolvido em 2014, que conta com a participação do médico, determinou que tanto o CBD quanto o Win 55212 (análogo sintético do THC, mas com potência superior) ajudam a reverter quadros psicóticos em modelos animais (ratos) de esquizofrenia. A seguir, o link para o estudo:

http://journal.frontiersin.org/Journal/10.3389/fphar.2014.00010/abstract

Existem ainda outros estudos (alguns em humanos, mas com um número pequeno de pacientes) em que a esquizofrenia foi tratada com THC apenas. Isso indica que a relação entre a canábis e distúrbios psicóticos é muito mais complexa do que Crippa tem afirmado, propositalmente dando a impressão de que o THC é perigoso, mas o CBD é bom, sozinho.

Eu havia conversado com diferentes famílias com crianças portadoras de epilepsia, e escutei que, em muitos casos, a presença do THC era necessária. Jason David, da Califórnia, conta que seu filho, Jayden, precisa de uma dose de THC superior a 1% para controlar suas crises. Plantas e extratos com doses menores não funcionaram. Contei o caso para o Dr. Crippa, que não se deixou abater com o argumento. Ele respondeu que seria uma questão de aumentar a dose de CBD, não haveria a necessidade do THC. Disse ainda que, no caso de um pai que não tem mais o que fazer, dar o extrato natural era a única alternativa. Nesses casos, era melhor que desse o medicamento impuro mesmo, mas Crippa estava confiante de que poderia fornecer uma alternativa superior com seu CBD isolado sintético.

Ele afirma, em seguida, que o THC não é tão perigoso para adultos e, portanto, também pretende desenvolver medicamentos com THC e CBD combinados para tratar, principalmente, a esclerose múltipla. Ele deixa claro, no entanto, que só quer desenvolver medicamentos “puros”, componentes isolados, nada natural. Apesar de ele ter afirmado que o efeito comitiva não era cientificamente aceito, ele menciona as interações entre o THC e o CBD e como elas podem ajudar o paciente.

A partir daí, Crippa passou a explicar procedimentos e perguntar sobre quais exames eu havia feito. Foi então que compreendi: “Acho que você está me confundindo com alguém, eu não sou paciente, sou jornalista”. Ele notou seu erro: julgando que falava com uma paciente, revelou uma série de informações sigilosas. Um comentário me chamou a atenção: “Bem que eu estranhei, você sabia tanta coisa”. Ele parecia bem consciente da falta de conhecimento de seus pacientes (não os julgo, é difícil mesmo encontrar informações confiáveis quando se trata de canábis) e ao notar que eu sabia um pouco mais passou a usar toda a sua habilidade argumentativa para me convencer de que o seu caminho era o mais indicado, o mais confiável. Talvez por isso advogava contra o THC com aqueles argumentos batidos.

Tentou então medir o estrago: “De que veículo você é?”. Expliquei que havia trabalhado em um projeto independente (se lembrou então de quem eu realmente era) e que não estava trabalhando pois me mudaria para a Inglaterra no mês seguinte. Achei que ele fosse entrar em pânico e desligar o telefone, mas foi muito educado. Crippa perguntou para qual cidade eu iria, já que ele mesmo fez pesquisas em Londres, me desejou sorte na carreira e, antes de desligar o telefone disse: “Eu falei algumas informações sigilosas para você, achando que era outra pessoa, não fala pra ninguém, tá?”.

Refleti sobre esse último pedido durante vários dias. Como jornalista, há um conflito ético com o qual eu teria que lidar. As informações caíram acidentalmente no meu colo, o que eu faria com elas? Pensei nas repercussões de revelá-las, conversei com algumas pessoas pedindo conselho. O peso de não revelar a estranha conversa, no entanto, parecia maior. Pacientes têm confiado na opinião de médicos, têm colocado suas esperanças na indústria, diversas pessoas foram iludidas a pensar que um medicamento natural era perigoso. Milhares de brasileiros estão sem tratamento hoje, enquanto um remédio eficaz poderia estar plantado em seus próprios quintais, de graça. Enquanto isso, pais perdem seus filhos para convulsões excessivas; famílias perdem entes queridos para o câncer, esclerose múltipla, Aids; pacientes sofrem desnecessariamente dores crônicas que os invalidam.

A decisão da Anvisa favoreceu o caminho mais longo, não necessariamente mais seguro, e mais lucrativo para a indústria. Enquanto a forma natural da canábis estiver proibida, a maior parte da população não terá acesso a esse tratamento. Enquanto as pessoas não tiverem informações sobre o assunto, a erva permanecerá proibida para uso medicinal. Eu não me perdoaria se segurasse informações e favorecesse esse caminho.

A regulamentação da maconha pode ajudar a economia do Brasil

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A frase pode soar estranha, mas não é loucura. Estamos à beira de uma crise econômica grave. Com a Copa do Mundo, a tendência é piorar. Enquanto o governo faz questão de iludir a população, dizendo que a Copa ajudará a economia instável do país, os economistas dizem o contrário.

Em entrevista para a Época, o professor de finanças da FGV, Luís Carlos Ewald, afirma que: “Todo mundo diz que a Copa vai ser muito boa para o Brasil. Mas depois que o evento passar, não haverá mais investidores no país, pois estão todos com medo”. Os investidores não são bobos. Quem quer investir em uma economia instável, com a inflação correndo solta e o risco de o Governo Federal interferir no seu negócio a qualquer momento? A burocracia e o câmbio flutuante também espantam multinacionais, que temem perder seus investimentos. Além disso, um monte de dinheiro entrando no país em junho e julho e depois sessando, só tem um resultado certo: mais inflação. A Copa se tornou suicídio econômico, não houve investimentos significativos no transporte, saúde, estradas. O resultado é uma crise econômica.

Os investimentos em estradas e portos, para o transporte de mercadorias pelo Brasil, não foram suficientes. As importações chegam a ritmo lento e o trânsito de caminhões só piora. Com a canábis, esse problema pode não interferir. A justiça liberou pela primeira vez a importação de um remédio derivado da canábis para a menina Anny Fischer, de Brasília, mas o custo da importação é alto e o transporte lento. As taxas alfandegárias são ridiculamente altas, reflexos do protecionismo brasileiro. Outras crianças não terão acesso porque a epilepsia não atinge somente famílias com alto poder aquisitivo. O problema, no entanto, tem fácil solução.

Regulamentando a produção e venda da canábis em território nacional, uma série de pequenos negócios locais surgiria da noite para o dia no Brasil, como aconteceu na Califórnia em 1996, e recentemente no Colorado. Com a legalização, o Colorado faturou um milhão de dólares por dia, enquanto o estado da Califórnia, que passava por uma crise financeira nos anos 90, passou a ser o oitavo estado mais rico dos Estados Unidos, explica Aseen Sappal, coordenador da Oaksterdam University, em Oakland.

Como a canábis pode ser produzida em qualquer lugar do Brasil, dentro ou fora de casa, os consumidores não precisam ir muito longe para obter sua mercadoria. Como os custos de uma canábis produzida localmente sai bem mais baixo, pois não precisa passar pelo alto custo do transporte, o consumidor vai preferir o produto local à importação, da qual os preços cobririam, inclusive, a burocracia portuária, pedágios, tempo de entrega, gasolina etc.

A canábis também ajuda pessoas que poderiam estar inválidas a continuar trabalhando e ter uma independência financeira. Esse é o caso de Gilberto Castro, que consegue se livrar dos espasmos causados pela esclerose múltipla graças à maconha. Ele fuma pela manhã, antes de ir trabalhar e à noite, quando chega em casa. De outra forma, ele afirma que não conseguiria continuar trabalhando como designer gráfico, pois mal conseguiria usar o mouse do computador.

A falta de investimentos na saúde, portanto, são aliviados com a regulamentação da maconha, que pode até substituir, em muitos casos, remédios caríssimos disponíveis nas farmácias. Isso pode até, quem sabe, diminuir os gastos públicos com os remédios distribuídos gratuitamente através do SUS, conforme pessoas optem por usar a canábis como forma de tratamento. Os produtos à base de canábis também podem ser distribuídos de diversas formas – comestíveis, vaporizados, plantas híbridas – o que garante uma grande variedade de produtos e uma concorrência livre, que dificilmente cairá nas mãos de monopólios, especialmente se esse mercado for devidamente regulado.

Com a regulamentação, serão recolhidos impostos com as transações, o que não acontece com o mercado ilegal de drogas. Com isso, pode-se decidir o destino do dinheiro gerado pela venda da canábis, como a melhoria de hospitais e escolas. Serão economizados, ainda, milhões de reais em recursos para sustentar a falida guerra contra as drogas. Isso também diminuiria o crescimento da população carcerária, que custa milhões ao Estado e está repleta de usuários e traficantes de drogas.

A canábis também é capaz de produzir cânhamo, um material natural, de extrema resistência, que pode produzir tecidos, carros (Ford produziu o primeiro carro de cânhamo no início do século XX) e até combustível, sem prejudicar a natureza. Segundo Cris Conrad, autor de diversos livros sobre a canábis, a planta é capaz de absorver toxinas do solo, ajudando a combater solos contaminados. Ele também explica que o cânhamo, além de produzir tecidos de melhor qualidade, é mais aproveitável que o algodão, ou seja, são necessários menos hectares de área plantada para produzir a mesma quantidade de tecido.

A canábis, portanto, ajuda na saúde, no meio ambiente e, principalmente, na economia decadente do Brasil. Pena que não atrai votos. Então, eu faço questão de apontar: nas eleições para presidente desse ano, voto no primeiro candidato a apresentar um plano sensato de regulamentação das drogas.