O que se passa na cabeça do brasileiro

Para muitos de nós, é difícil compreender a recente eleição de Bolsonaro. As intensões de voto resultaram em fim de relacionamento, brigas de família, quebra de amizade. O Brasil era um país onde se evitava falar de política, onde os relacionamentos sociais eram mais importantes do que opinião ou até atos moralmente duvidosos. Tudo mudou. De repente, mudou. Eu escrevo isso, assistindo de uma considerável distância o que está acontecendo em meu país de origem. Do conforto da Inglaterra, onde a ameaça do Brexit agora não parece tão ruim, lhes ofereço a minha análise do que causou essa baderna irreversível; e a resposta é simples: o medo.

Parece um pouco simplista e exagerado, uma generalização de fenômenos muito mais complexos. Eu concordo – parece mesmo. Quando pensamos no medo, invocamos uma imagem de nossos corações acelerando, os joelhos tremendo, o suor de pânico escorrendo pelo rosto. O medo é muito mais do que isso e ele se manifesta de diversas formas. O medo pode vir de um objeto externo, como uma onça pintada se aproximando do seu acampamento; ou de uma reação interna, uma associação antiga entre um trauma de infância e um objeto tão inócuo quanto um sapo de brinquedo. O medo pode ser inato e instintivo, como a tendência do ser humano em temer cobras e aranhas, ou pode ser condicionado, como aquele arrepio na espinha quando ouvimos a música de suspense em um filme. Mais importante: o medo é potencializado por traumas.

Com alta criminalidade, corrupção, violência doméstica, altos índices de exclusão social, discriminação e impressionante disparidade na distribuição de riquezas, o Brasil é um país de traumatizados. Eu sou professora de inglês e tenho alunos de uma grande variedade de nacionalidades. Notei que, quando se fala em criminalidade, todo brasileiro tem pelo menos uma história de assalto. Eu gosto de observar os outros alunos escutando, estupefatos com a calma do estudante brasileiro ao descrever tal episódio de violência. Raramente um aluno de outra nacionalidade tem uma história dessas para contar, e eu incluo aqui colombianos, tailandeses, chineses e estudantes de diferentes países africanos. No Brasil, a violência é normal.

É impressionante como nos acostumamos com essa realidade. Eu morei nos Estados Unidos e, depois que voltei para o Brasil, passados alguns anos fui visitar amigos na Califórnia. Eu notei o quão estressada estava quando meu amigo, que havia me buscado no aeroporto, parou em um restaurante para buscar nossa janta e me disse para esperar no carro. Já estava escuro e eu ficava de olho no retrovisor para ver se alguém se aproximava. Durante cinco minutos eu estava em estado de alerta constante, olhando ao meu redor caso visse alguém suspeito. Quando ouvi uma motocicleta passar, prendi a respiração. Quando meu amigo voltou para o carro, eu me dei conta de onde estava e me lembrei de que não precisava me preocupar. Relaxei. As semanas seguintes foram como uma terapia. A distância daquele estresse todo me fez muito bem. Mas a hora de voltar para o Brasil chegou e eu voltei ao antigo stress, agora muito consciente dele. No mesmo ano engravidei e decidi me mudar do país.

O que acontece quando todo esse stress não vai embora nunca? Quando estamos constantemente expostos à violência e nos sentimos desamparados? Essa é a parte importante, que nos ajuda a compreender o comportamento de nossos colegas eleitores. Precisamos falar do cérebro. Mais especificamente, a parte inferior do cérebro e o lobo frontal. Só para deixar bem claro, essa vai ser uma explicação bem por cima e simplificada, para haver um entendimento geral sobre como um comportamento ocorre. Não entrarei em detalhes neurocientíficos porque já tem nerdice demais como está.

Quando nascemos, o lobo frontal está offline. O lobo frontal se desenvolve conforme crescemos e não está funcionando muito bem até nos tornarmos adultos – às vezes nem depois disso. Essa é a parte do cérebro responsável pelo raciocínio lógico, pelo aprendizado, pela capacidade de controlarmos nossas emoções e comportamentos. Bebês não sabem fazer nada disso. Por isso eles choram quando sentem fome, frio, calor, falta da mãe, tédio, fralda molhada, etc. Por isso também eles fazem cocô quando têm vontade e vomitam nas pessoas sem nenhum pudor. O lobo frontal deles vai aos poucos aprender a controlar essas coisas e se adequar ao mundo a seu redor.

A parte inferior do cérebro, no entanto, está funcionando a todo vapor. Essa parte do cérebro:

“contém sete forças hormonais enormes – os sistemas emocionais geneticamente arraigados. Há três sistemas de alarme – RAGE (frustração, irritação), FEAR (medo) e PANIC/GRIEF (pânico, perda, angústia da separação) – e três sistemas calmantes, de bem-estar e pro-sociais – CARE (afeto), SEEKING (procurando, desejo, antecipação) and PLAY (brincadeira, alegria, despreocupação) – e, finalmente, LUST (acasalamento). Esses sistemas são como músculos, quanto mais os ativamos, mais eles se tornam parte da personalidade”. (Sunderland, 2016, p.19)

Sem o lobo frontal desenvolvido, um bebê não tem capacidade de controlar suas emoções, que são o resultado da ativação desses sistemas hormonais. O bebê precisa de um adulto para fazer isso pra ele. Quando um bebê tem um sistema de alarme ativado (por exemplo, o sistema FEAR é ativado pela presença de uma pessoa desconhecida), ele chora descontroladamente. Quando a mãe pega o bebê no colo e o acalma, o sistema CARE é ativado, e o bebê para de chorar porque hormônios pro-sociais estão se espalhando pelo corpo dele. Conforme crescemos e o nosso lobo frontal se desenvolve, aprendemos a controlar nossas emoções com raciocínio. Digamos, por exemplo, que uma cena particularmente medonha de um filme de terror ativou o seu sistema FEAR. Rapidamente, o seu lobo frontal te lembra que é apenas um filme e o sistema PLAY é ativado, você ri de si mesmo e continua vendo o filme.

A ativação dos sistemas pro-sociais acalma, deixando-nos em um estado que beneficia o desenvolvimento do lobo frontal. Quando estamos relaxados e nos sentindo seguros, é hora do nosso cérebro aprender e do nosso organismo alocar nossas energias no desenvolvimento cerebral. Quando os sistemas de alarme são ativados – por exemplo, há um urso correndo em nossa direção – nosso corpo desvia todos os seus recursos para uma ação rápida, sem pensar muito: corre! Nessas situações a adrenalina e o cortisol (o cortisol é famoso por causar os sintomas físicos do stress, como dor muscular) são liberados e a nossa preocupação é sobreviver. Quando estamos irritados porque o trem já veio três vezes, estava muito cheio e não conseguimos entrar, e o chefe vai reclamar de novo do atraso, o mesmo sistema de alarme é ativado.

Dá para imaginar, então, a frequência com que os sistemas de alarme são ativados no brasileiro. Esperar horas na fila do banco, ser encoxada no ônibus, ser esmagado contra a porta em um metrô lotado ou ficar preso no trânsito: todas essas coisas podem ativar os sistemas de alarme, os mesmos sistemas que são ativados quando tememos por nossas vidas. A esporádica ativação não vai te matar, mas a ativação frequente tem seus perigos.

Como explica Sunderland, quanto mais esses sistemas são ativados, mais sensíveis eles se tornam. Enquanto crianças que cresceram em um ambiente seguro, com pais atentos e bastante estímulo (brincadeiras, passeios, etc) têm os seus sistemas pro-sociais constantemente ativados e se tornam adultos resilientes e confiantes, crianças que crescem em um ambiente abusivo, violento ou cheio de inconstâncias, têm seus sistemas de alarme ativados com frequência. Uma ampla quantidade de estudos indica que traumas na infância preveem uma série de problemas na vida adulta, desde ansiedade e depressão, entre outros problemas de saúde, até comportamento criminoso.

No Reino Unido, estima-se que mais de 40% da população esteja vulnerável a esses efeitos (conhecido em inglês como insecure attachment), devido a uma infância não ideal. A porcentagem é semelhante em outros países ricos. Embora não tenhamos os mesmos dados para o Brasil, é possível que essa porcentagem seja maior, e até semelhante a países em guerra, devido à alta exposição a traumas.

{Nota: quando falo de trauma, não me refiro apenas a acontecimentos que todos concordamos serem terríveis, como abuso sexual e violência física; situações muito mais sutis, como abuso psicológico prolongado, situação de dificuldade financeira e negligência podem causar danos semelhantes}

O que essas pessoas desamparadas procuram desesperadamente? Se sentir seguras. Da mesma forma que uma criança com medo procura pelos pais para receber um abraço calmante, nós adultos procuramos em outras pessoas uma forma de nos sentirmos seguros quando nosso lobo frontal não está dando conta sozinho. Para pessoas que sofreram trauma, ou que simplesmente tiveram seus sistemas de alarme ativados com muita frequência por um período de tempo prolongado, é comum confiar cegamente naquela pessoa que prometeu cuidar dela, protege-la, e se metem em um relacionamento abusivo.

O Brasil é essa pessoa, cheia de trauma e ansiedade social, entrando em um relacionamento abusivo com um cara violento que prometeu manter o país seguro. Bolsonaro é aquela droga que promete uma escapada da realidade, mas que a longo prazo vai trazer efeitos colaterais terríveis. Nós tomamos essa droga quando estamos desesperados. O Brasil está desesperado. E assim como uma pessoa que se submeteu a um relacionamento abusivo com um parceiro agressivo, não é na primeira vez que apanha que o relacionamento vai terminar. Nós deixamos acontecer de novo, e de novo, porque nos abraçamos àqueles momentos em que essa pessoa nos fez sentir seguros. Criamos desculpas para ela, ouvimos suas explicações e as aceitamos, acreditamos que é um pequeno preço a pagar para termos acesso ao lado bom dela.

E qual é a pior coisa pra dizer a essa pessoa sofrendo abuso? “Viu só! Falei pra você que ele não prestava”.

A melhor coisa a fazer: oferecer abrigo, suporte emocional, ajudar essa pessoa a se sentir segura sem o parceiro abusivo, mostrar que ela não está sozinha e ao mesmo tempo ser claro e assertivo que esse relacionamento não é saudável.

Em tempos macabros, o que o Brasil precisa é união, apoio, compreensão. A divisão de times e a segregação só vão fazer esse relacionamento durar. Vamos mostrar que o Brasil não precisa desse cara e vamos ajuda-lo a retomar sua vida. Vai ser difícil, mas o lobo frontal nos ensina que o melhor comportamento as vezes precisa de uma boa dose de autocontrole.

Referencias:

  • Rifkin, J. (2009). The Empathic Civilization. New York: Penguin.
  • Sunderland, M. (2016). The Science of Parenting. 2nd New York: DK.
  • Sutherland, S. (2013). Irrationality. 2nd London: Pinter and Martin.
  • Zeedyk, S. (2015). Sabre Tooth Tigers &Teddy Bears. Video recording, YouTube, viewed 21 Feb, 2018, <https://www.youtube.com/watch?v=zsAV_qez7SE&t=5932s>

Resposta a Luiz Felipe Pondé

Leia o texto de Pondé aqui.

A conta do sofrimento masculino com a emancipação feminina chegou, e ela se chama seleção natural. É isso, meu caro darwininsta, a evolução da espécie prossegue, quer você acompanhe, quer não. Quem não se adapta às mudanças do meio ambiente vai se perdendo na seleção natural. Mas, como Darwin defendeu – e talvez você tenha perdido essa parte do darwinismo ao perder seu tempo defendendo sua simplificação interpretada por Herbert Spencer – a sociabilidade é de suma importância para se obter vantagem evolutiva; formar conexões é tão importante quanto acasalar para a sobrevivência da espécie. Então, não se preocupe, nós feministas não o deixaremos para trás.

Vamos começar com alguns esclarecimentos. Em sua coluna, você pergunta: “O que será o homem do século 21?”. Ele continuará sendo homem, igualzinho antes. A gente só espera que ele seja mais empático, e isso serve para as mulheres também.

Tenho que discordar de que “à medida que se torna mais inteligente (…) mais ele ficará interessado em si mesmo”. Ao que tudo indica, quanto mais inteligentes, mais interesse temos nos outros. Isso não é um discurso feminista cheio de mimimi; estou falando de neurociência, psicologia social, teoria do apego. Vou explicar melhor.

No estudo do desenvolvimento infantil, sabe-se que as crianças mais bem apegadas – que possuem figuras de apego, como a mãe, pai ou outro adulto significativo – se tornam mais inteligentes (Sunderland, 2016) (Rifkin, 2009) (Mooney, 2010). Isso ocorre porque, ao se sentirem seguros, os bebês e as crianças estão livres para explorar e aprender; sem o stress da autopreservação, já que um adulto está cuidando disso para eles, há mais espaço para o cérebro se desenvolver (Zeedyk).

Em um experimento famoso desenvolvido por Harry Harlow, macaquinhos bebês tiveram as mães substituídas por uma mãe postiça. Metade deles recebeu uma mãe de pano, bem confortável, e a outra metade uma mãe de fios, menos agradável para se aconchegar. Ambas as mães davam leite, para que os macacos fossem nutridos adequadamente. Os macacos com as mães de pano sobreviveram com muito mais sucesso que os macacos com as mães de fios, mesmo quando o leite deixou de ser oferecido. O experimento demonstra a importância de o bebê se sentir seguro e conectado para sobreviver, algo que é semelhante em todos os mamíferos.

Quanto mais apego, mais carinho ela recebe, mais inteligente e resiliente se torna a criança, além disso, ela se torna mais empática. E a empatia é parte essencial na máquina evolutiva de nossa espécie. Sem ela, nos destruímos uns aos outros, sem nos preocupar com os sentimentos de nossas vítimas.

De fato, se a procriação fosse a principal chave da sobrevivência da espécie humana, como explicaríamos a homossexualidade? Fosse assim simples, os genes que determinam predisposição para a homossexualidade já teriam sido extintos na seleção natural, já que a procriação é rara em relacionamentos homo afetivos. A ativação dos “genes gays” ocorre como uma ferramenta de sobrevivência, de acordo com o Dr. James O’Keefe. Quando há um desequilíbrio de gêneros na população, nascem mais gays. Isso ocorre porque, como expliquei anteriormente, nós dependemos de afeto, de relações sociais e conexões para sobreviver. Quanto mais filhos homens uma mãe tem, maiores as chances de o próximo ser gay. O quinto filho homem tem 33% mais chances de ser gay que o primeiro.

Então, quando você diz que as meninas partirão “para a experimentação lésbica por puro desespero”, você está errado. As lésbicas serão lésbicas, as hétero serão hétero. E trans não é moda. Toda essa comunidade LGBT vem de uma ativação genética que a mãe natureza talhou com o maior cuidado para ajudar a nossa espécie. O mesmo gene que determina a homossexualidade também determina maior capacidade para inteligência emocional. O’Keefe explica que, as pessoas que tiram as notas mais altas nos testes de inteligência emocional têm mais de 50% de probabilidade de ser gay. É o gene da empatia.

A homofobia é, portanto, uma afronta à evolução. Isso também vale para o machismo, racismo e todos os tipos de discriminação que indicam um baixo nível de empatia, de consideração pelo bem-estar alheio. O feminismo luta a favor da evolução, das conexões, da empatia, do bem-estar coletivo. E, não se preocupe, nós temos parceiros, maridos, namorados, filhos. Não somos essa figura estereotipada que você pinta em seu artigo.

Agora, vamos combinar, ser darwinista e depois fazer, no mesmo texto, um comentário criacionista é meio contraditório. Também é contraditório dizer que homem é complexo e listar as fantasias sexuais mais cliché da caixa de prazeres. Talvez quem está precisando fazer experimentações sexuais é você, Pondé. Vai lá se descobrir, seja sozinho ou com uma mulher que confie e respeite, e tenta dar uma relaxada. A mudança acontece mesmo, não precisa entrar em pânico. Embarque na evolução que nós não queremos te deixar para trás. Nós só estamos pedindo respeito e igualdade para todos.

E é claro que vamos respeitar seus sentimentos, até mesmo seu temor pelo fim da espécie; mas preciso te lembrar, também, que o ocidente não é mercado de carne, e mulher não é filé para você ir lá catar uma que satisfaça o seu apetite. Até entendo você estar invejando os homens de sociedades menos igualitárias, mas tenho fé em você e a certeza de que você supera isso.

Também vale lembrar que doçura não quer dizer submissão. E submissão é a única característica que você não vai encontrar em mulheres feministas.

Polarização e política do medo

 

polarizacao-azul-vermelhoHá duas salientes linhas de pensamento hoje no Brasil. Eu as chamarei de A e B, e descrevo as duas abaixo:

 

Linha de pensamento A

Há um plano de ação em processo, com a intensão de implantar o comunismo/socialismo totalitário no Brasil. Para alcançar esse objetivo, os orquestradores desse plano (muito representados por políticos de esquerda), pretendem trazer abaixo todos os valores cristãos, que são a principal barreira impedindo que esse desejo se concretize. Para tal, esse grupo esquerdista é capaz de qualquer coisa, até mesmo corromper crianças através do homossexualismo e a pedofilia. Esse plano se disfarça de uma coisa boa, se manifestando na forma de movimentos por direitos humanos, direitos LGBT, feministas, etc, ganhando assim muitos adeptos. Mal sabem eles que são “massa de manobra” para fins sinistros.

 

Linha de pensamento B

Há um plano de ação em processo, com a intenção de implantar uma nova ditadura no Brasil. Os orquestradores desse plano – representados por políticos de direita em parceria com grandes corporações – contam com o apoio de muitos religiosos, que são facilmente manipulados por pastores (especialmente da igreja evangélica). As pessoas que apoiam esse plano, religiosos ou não, costumam ser racistas, homofóbicas, preconceituosas em geral. Eles acreditam numa forma moderna, mais disfarçada, de escravatura através do trabalho; pois a maioria deles são pessoas com dinheiro, e carregam um grande rancor do pobre.

 

Se você achou a primeira linha de pensamento absurda, é bem provável que a segunda lhe soe plausível. Se o pensamento A faz sentido para você, você deve ter achado o pensamento B completamente insano. Isso é a polarização.

Qual das duas linhas de pensamento está correta? Nenhuma. O motivo pela qual uma delas provavelmente soa plausível para você (e para mim, eu não estou imune a esses processos) pode ser explicado pela heurística.

 

Heurísticas

 

Segundo a Wikipédia, heurística “é um método ou processo criado com o objetivo de encontrar soluções para um problema. É um procedimento simplificador (embora não simplista) que, em face de questões difíceis, envolve a substituição destas por outras de resolução mais fácil a fim de encontrar respostas viáveis, ainda que imperfeitas. Tal procedimento pode ser tanto uma técnica deliberada de resolução de problemas, como uma operação de comportamento automática, intuitiva e inconsciente”.

626381112Nós fazemos isso o tempo todo. O cérebro humano desenvolveu técnicas de solução rápida de problemas, que podem ser muito úteis, mas que muitas vezes causam falhas de julgamento. O exemplo mais clássico é o da heurística da disponibilidade, na qual um julgamento é feito baseado no primeiro pensamento que vem à mente.

O Dr. Jerome Groopman (apud Skeptical’s Dictionary) exemplifica essa heurística com o caso de um médico que diagnosticou vários casos de pneumonia viral no decorrer de algumas semanas. Uma paciente então apresentou sintomas similares, mas não apresentou as características manchas brancas no raio-x do pulmão, típicas de pneumonia viral. O médico a diagnosticou como estando nos estágios iniciais de pneumonia. Ele estava errado. Outro médico apresentou o diagnóstico correto: envenenamento por aspirina. O julgamento do primeiro médico havia sido atrapalhado pela grande disponibilidade de casos com o mesmo diagnóstico.

Nós não compramos um bilhete de loteria pensando nas chances extremamente baixas de recebermos o prêmio, mas nos casos de vencedores que vemos nos jornais e nos comerciais. Essas imagens estão mais disponíveis do que os números concretos da probabilidade, levando muita gente a superestimar suas chances. Assim, também, sempre que os noticiários estampam o rosto de terroristas islâmicos na TV, aumentam os ataques a estrangeiros (principalmente árabes, mas muitas vezes também mexicanos e indianos) nas ruas dos Estados Unidos. As chances de ser morto por um americano branco, por um bebê ou por um cortador de gramas são muito maiores do que por um terrorista mulçumano, mas a heurística da disponibilidade faz com que as pessoas vejam o mulçumano como uma ameaça maior.

Evitar esses erros de julgamento dá trabalho. É preciso ponderar, buscar o máximo possível de informações sobre o assunto, analisar versões com pontos de vista diferentes, etc. O uso das mídias sociais também colabora para intensificar a ocorrência de heurísticas.

As pessoas recebem grandes quantidades de informações através da internet, o que as força a fazer julgamentos ainda mais rapidamente. Além disso, o sistema de mídias sociais como o Facebook, intensifica a disponibilidade cada vez mais radical de um ponto de vista. Quando você clica em um artigo que foi compartilhado por um colega, o Facebook recebe essa informação como uma indicação de interesse por determinado assunto. Baseando-se nessa informação, ele passa a disponibilizar mais links sobre esse assunto, autor, veículo, etc. Então digamos que você clique em um artigo de uma revista de ponto de vista predominantemente de direita. Mais artigos de direita vão aparecer e você vai clicando. Em um determinado momento, todos os links vão apresentar um ponto de vista mais de direita, te deixando sem a opção de visualizar um ponto de vista diferente.

É comum, também, participar de grupos online onde mais pessoas compartilham um ponto de vista. Stuart Sutherland, em “Irrationality” (1992), explica que, quanto mais se convive com pessoas de um mesmo ponto de vista, mais essas pessoas se radicalizam para aquela linha de pensamento. Pessoas com o mesmo ponto de vista, validam e encorajam esse pensamento, e a falta de contra-argumentos – por evitarmos pessoas que pensam diferente – faz com que crenças se intensifiquem cada vez mais. Nós agimos assim por gostarmos de sentir que estamos corretos e receber a aprovação do grupo; encaramos a discordância como uma afronta, uma ofensa.

 

O medo

 

Suzanne Zeedyk explica o sucesso de Hitler através do medo e, acima de tudo, a origem do medo. O cérebro em desenvolvimento possui um sistema FEAR (medo) que funciona como um músculo; quanto mais ele é ativado na infância, mais sensível ele fica. Crianças que sofreram abuso, por exemplo, costumam ter esse sistema muito sensível. É como um alarme automotivo que dispara toda vez que alguém encosta no carro. O menor dos estímulos pode desencadear um ataque de pânico, ansiedade, agressividade, ou qualquer que seja a reação. Isso pode perdurar até a vida adulta. A geração de Alemães que apoiou o nazismo de Hitler, viveram uma infância na qual o “conselho da moda” dado aos pais era de uma criação autoritária dos filhos. Na criação autoritária predomina a disciplina, alcançada através de punições (sejam físicas, castigos ou humilhações) e ameaças. Esse tipo de criação ativa o sistema FEAR do cérebro em desenvolvimento com muita frequência.

Na vida adulta, quando esse sistema continua sensível, há um medo irracional de ameaças externas. Para justificar esse sentimento, essas pessoas criam um inimigo, que pode ser, no caso da Alemanha nazista, os judeus, negros, etc… As pessoas se unem contra esses inimigos em comum, sentem-se parte importante de uma comunidade, sentem-se mais seguras. Onde há medo generalizado, há sempre uma pessoa (ou mais pessoas) disposta a usar isso para alcançar o poder. Hitler não teria sido tão bem-sucedido, e feito o estrago que fez, não fosse o apoio que recebeu das pessoas (lembrando que não foram todos os alemães que apoiaram Hitler; não é preciso que todos, ou mesmo a maioria, apoiem uma pessoa como ele para que ela seja bem-sucedida).

O mesmo acontece hoje em dia. Figuras totalitárias recebem apoio das massas por representarem um sentimento de segurança. Para uma pessoa com o sistema FEAR soando o alarme constantemente, é beneficial sacrificar sua liberdade em nome da segurança.

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A polarização é um fenômeno que costuma preceder um momento histórico traumático, guerras civis ou guerras entre países, por exemplo. Em pleno 2016, ela tem acontecido no mundo todo, acelerada pela internet e viabilizada pelo medo. No Brasil, ela se manifesta na forma dos times A e B, que seguem os pensamentos A e B mencionados acima. Não é preciso que você concorde inteiramente com um deles, se identificar em parte é o suficiente para ser acatado por um grupo e se tornar inimigo do outro; aos poucos a sua afinidade com esses ideais deve se intensificar.

Enquanto o time A e o time B brigam entre si, o pequeno grupo de pessoas no poder lutam por elas mesmas; fazendo alianças com quem lhes for conveniente, apoiando o time que lhe for conveniente, promovendo e executando ações que lhes são convenientes, tudo em nome da manutenção do poder. Quando mais intensa a polarização, mais facilidade essas pessoas têm de permanecer e aumentar seu poder, se preocupando somente com as falcatruas e picuinhas entre eles mesmos.

Enquanto a população brigar entre si e enxergar uns aos outros como inimigos, continuaremos em declínio. Quando aceitarmos diferentes opiniões e o constante debate como parte fundamental para a manutenção da democracia, as coisas tendem a fluir. A população mais crítica, unida e reflexiva é mais forte para se defender contra a manipulação de oportunistas em busca de poder.

 

debate1O que fazer?

– Reflita sobre si mesmo, sobre o motivo para suas opiniões e pontos de vista; busque ser mais aberto a novas informações e mais flexível; tente reconhecer os momentos em que seu julgamento foi afetado por heurísticas.

– Se relacione e converse com pessoas que pensam diferente de você. Mesmo que você não concorde com elas, tente entender porque essas pessoas pensam assim e acima de tudo, respeite-as.

– Pratique a empatia com mais frequência; tente sentir o que o outro sente, se colocar em seu lugar e imaginar como é essa realidade. Procure não enxergar outras pessoas como “inimigos”, mas como pessoas que viveram outras e experiências e discordam de você. Tanto ela quanto você podem mudar de ideia um dia e acabar descobrindo que têm muito em comum.

– Debata com pessoas diferentes. A única forma de validar um ponto de vista é tentando provar que ele está errado. Escute argumentos conflitantes e reflita novamente sobre seus conceitos. Você pode manter a mesma opinião, adaptar seu ponto de vista ou mudar de ideia completamente.

– Procure saber mais sobre um assunto antes de expressar sua opinião na internet. Use fontes com pontos de vista opostos para elaborar sua opinião.

– Tente ver o mundo como um espaço para a colaboração e não para conflitos.

 

Observação: eu não me excluo dessa lista. Tenho tentado seguir esses passos (é um processo contínuo) e acabei descobrindo muitas coisas sobre mim mesma, meus preconceitos e vieses, e também tenho aprendido muito sobre pessoas com vidas completamente diferentes da minha. Ainda tenho muito a aprender, mas sinto que a minha vida se tornou muito mais fácil e positiva depois desse choque psicológico e por isso recomendo.

Sobre o mau comportamento

diego2No ano passado, o vídeo de um menino de sete anos – vamos chama-lo de Diego – na cidade costeira de Macaé, no Rio de Janeiro, se tornou viral. No vídeo, o menino vira cadeiras, mesas, joga objetos pela sala, faz uma bagunça danada. Os professores ficam a sua volta, parados, sem saber o que fazer. Uma funcionária, acredita-se que seja a diretora da escola, diz: “Eu quero saber com a orientação educacional, com a assistente social, com a polícia, o que a gente faz com uma criança dessas?”. O vídeo foi compartilhado quase 30 mil vezes, recebendo mais de 23 mil comentários, muitos dos quais são perturbadores.

First comment: "lack of a beating"; second comment: "thank god my parents beat me up as a kid so today I`m not a worthless criminal or a thief, always respected everyone including my parents". Third comment laments that, in Brazil, psychologists and human rights restrain people from providing "proper education" (?) imposing limits to children.

First comment says "beat him up"; the other suggests he`s taken to a prison so the police would "freak him out".

Ainda no vídeo, um dos funcionários (talvez a diretora) instrui os outros a não tocarem na criança e esperarem até que sua mãe chegue na escola. “A gente não pode bater nele, não pode segurar ele”. Não, não pode; mas também não deve (voltarei a falar sobre isso mais para frente). O garoto acabou indo parar no Fantástico, onde os especialistas entrevistados lamentam o fato de professores se sentirem presos e não poderem impor limites em crianças como ele.

O que mais me chateia – além da grotesca exposição dessa criança – é que isso mostra o quão despreparados, não apenas pessoas em geral (incluindo pais e responsáveis), estão educadores, psicólogos e outros profissionais ao lidar com uma criança de comportamento difícil. E isso não é exclusivo do Brasil. No Reino Unido, em 2012, “mais de 40% dos pais admitiram ter punido fisicamente ou batido em uma criança no decorrer de um ano (…) e cerca de 77% gritou com os filhos” (Sunderland, 2016, p.178).

Eu não os culpo. A maioria dos pais aprendeu que se deve “disciplinar” os filhos para que eles se comportem bem. Eu também já pensei da mesma forma, mas eu tenho aprendido muito desde que me tornei mãe e trabalhando com crianças – e eu gosto de compartilhar aquilo que aprendo, então vamos lá. A seguir, explicarei porque crianças se comportam mal e o que fazer a respeito.

 

Pequenos cérebros, grandes emoções

Os seres humanos nascem com o lobo frontal subdesenvolvido. Trata-se da parte do cérebro responsável pelo pensamento claro e intenções. Isso significa que não nascemos com a habilidade de controlar nossas emoções. Nós aprendemos isso através de nossas conexões com os adultos a nossa volta, como familiares, educadores, etc. Dessa forma, o mau comportamento costuma ser resultado de um cérebro imaturo.

frontal lobe

Em contraste com o lobo frontal, desde o nascimento, a parte inferior do cérebro humano está funcionando completamente. Essa região do cérebro

“contém sete forças hormonais enormes – os sistemas emocionais geneticamente arraigados. Há três sistemas de alarme – RAGE (frustração, irritação), FEAR (medo) e PANIC/GRIEF (pânico, perda, angústia da separação) – e três sistemas calmantes, de bem-estar e pro-sociais – CARE (afeto), SEEKING (procurando, desejo, antecipação) and PLAY (brincadeira, alegria, despreocupação) – e, finalmente, LUST (acasalamento). Esses sistemas são como músculos, quanto mais os ativamos, mais eles se tornam parte da personalidade”. (Sunderland, 2016, p.19)

Para uma criança, pequenas coisas como cansaço e fome podem ser motivo para uma crise de mau comportamento. Por causa do lobo frontal desenvolvido, adultos possuem a habilidade de compreender porque estão irritados e ir buscar algo para comer, descansar, caminhar ou qualquer coisa que os faça se sentir melhor. Crianças precisam de um adulto que as ajude a entender e lidar com seus sentimentos. O que parece pouco para um adulto, para uma criança pode ser super estressante.

Quando crises de mau comportamento não são lidados apropriadamente na infância, elas podem continuar ocorrendo na vida adulta. Se você trabalha com atendimento ao cliente, provavelmente já se deparou com um desses adultos.

 

Motivos para o mau comportamento de acordo com Sunderland:

– Fome ou cansaço;

– Alimentação (açúcar, adoçantes e certos aditivos nos alimentos podem afetar o comportamento da criança);

– Cérebro emocional ainda pouco desenvolvido (conforme explicado anteriormente);

– Cérebro pouco estimulado (enquanto adultos podem ligar o rádio ou algo do tipo, crianças podem tentar estimular a si mesmos causando uma situação com seu comportamento);

– Necessidade de reconhecimento (crianças que estejam buscando a atenção de adultos podem usar o comportamento como uma forma de consegui-la);

– Necessidade de estrutura (falta de estrutura, como uma rotina clara);

– Necessidade de ajuda com um grande sentimento (tensão devido a um evento em particular na vida da criança);

– Absorvendo o stress dos pais;

– Parte errada do cérebro da criança sendo constantemente ativada.

O último ponto merece atenção especial, pois nesse caso é preciso que os pais, responsáveis ou educadores mudem sua forma de se relacionar com a criança. Sunderland explica que

“Um dos principais motivos que levam crianças a se comportarem mal é devido à forma como os pais se relacionam à criança, ativando a parte errada do cérebro. Você terá mais dificuldades com os filhos se a criação estiver ativando os sistemas RAGE, FEAR ou PANIC/GRIEF do cérebro inferior. Você terá momentos mais agradáveis se ativar os sistemas CARE, PLAY ou SEEKING”.

Gritar, punir fisicamente e ameaçar a criança com frequência irá superestimular os sistemas RAGE, FEAR e PANIC/GRIEF, tornando a criança mais suscetível a crises de mau comportamento; e não o oposto, como a maioria das pessoas comentando no vídeo do Diego parecem acreditar.

“Da próxima vez que estiver prestes a dar bronca em uma criança (normalmente por causa de um comportamento que você não gostou), pergunte-se se há uma forma mais gentil de se expressar – por trás de todo comportamento há uma necessidade emocional, e não é a necessidade de levar bronca”. (Suzanne Zeedyk)

Há dois tipos de crises de comportamento, a crise aflitiva e a de Pequeno Nero. Ambas devem ser levadas a sério e tratadas apropriadamente, de maneiras diferentes.

 

Crise aflitiva

Use your developed frontal lobe to control your emotions and deal appropriately  with a challenging child.

Use o seu lobo frontal desenvolvido para julgar a situação e lidar com a crise da criança apropriadamente.

“Uma crise aflitiva indica que um ou mais dos sistemas de alarme foi fortemente ativado. Esses sistemas de alarme são RAGE, FEAR e PANIC/GRIEF. Isso resulta no estado de alerta da criança se desequilibrando, com níveis excessivos de componentes do stress fluindo pelo corpo e cérebro”. (Sunderland, 2016, p.184)

Esse tipo de crise pede uma aproximação do adulto, para acalmar a criança. Segurar a criança com carinho, oferecendo palavras calmantes, ajudará a fazê-la se sentir segura novamente. Então, assim que a criança estiver se sentindo mais calma, a melhor coisa a fazer é distraí-la – com uma canção, mostrando algo interessante, etc.

Castigos e punições, isolar a criança em um quarto, ignorar ou não dar atenção a essas crises de comportamento pode ser prejudicial, podendo levar a crises mais longas e mais frequentes.

 

Crises de Pequeno Nero

Essa é bem diferente da crise aflitiva e pede uma resposta diferente. O adulto, nesse caso, deve dar menos atenção à criança. Essa crise reflete o desejo de manipular o adulto – quando a criança quer um doce, por exemplo, e tenta convencer os pais a compra-lo gritando e não cooperando. Se a criança consegue o que quer, ela continuará tendo uma crise toda vez que ouvir “não”.

Não adianta tentar argumentar, negociar ou persuadir a criança durante a crise de Pequeno Nero, pois só estará dando a ela a atenção que ela está pedindo. Não grite com a criança, pois ela irá aprender que esse é um comportamento aceitável.

Normalmente, a criança que está tendo uma crise de Pequeno Nero vai parar ao ser ignorada; ou quando compreender que receberá atenção do adulto quando estiver calma e pedindo algo educadamente. Entretanto, algumas vezes, uma crise de Pequeno Nero pode escalar para uma crise aflitiva. É importante saber distingui-las para que sejam lidadas corretamente. Se a criança muda de um comportamento onde ela dá comandos ou exige algo incessantemente para um estado de dor genuína, a criança precisará de ajuda para lidar com seus sentimentos.

Suzanne Zeedyk nos lembra que “mesmo crises de Pequeno Nero refletem uma criança tendo dificuldades ao lidar com seus próprios desejos; então, carinho sem limites” é sempre a melhor abordagem.

 

No caso de Diego, ele não estava exigindo nada; ele silenciosamente destruía a sala dos professores. Eu diria se tratar de uma crise aflitiva. Ele estava tentando lidar com um sentimento muito forte e não sabia como, resultando no seu comportamento destrutivo.

Pessoalmente, essa é a minha forma de lidar com a situação – apesar de haver outras formas de lidar com ela: eu o levaria (sem machucá-lo de nenhuma maneira) para algum lugar, provavelmente do lado de fora, onde ele não pudesse causar muitos danos ou se machucar. Eu usaria frases calmantes, como: “Está tudo bem; ninguém está bravo com você; não se preocupe; vai ficar tudo bem”. Eu esperaria ele se acalmar e me sentaria ao lado dele, talvez colocando uma mão no seu ombro ou costas (se ele deixar) para oferecer conforto. Eu então conversaria com ele, para tentar descobrir o que causou a crise. Perguntas simples, como: “Como foi o seu dia?” , podem ser bem elucidativas. Talvez houve um desentendimento com um colega, talvez ele sofreu bullying, ou talvez algo esteja acontecendo na casa do garoto. Pode ser que ele não diga nada ou queira falar sobre outra coisa, ou brincar. O importante é que ele agora está mais calmo e pronto para retornar a sua rotina.

É importante lembrar que para lidar com crianças com frequentes crises de comportamento é preciso muita paciência. Crianças precisam de tempo para aprender a lidar com seus sentimentos ou pedir ajuda a um adulto. E que gritar, punir fisicamente, isolar ou humilhar a criança não são métodos eficientes. Diego foi filmado e exposto a milhares de pessoas, muitas das quais expressaram o desejo de puni-lo agressivamente e usaram palavras ofensivas para se referir a ele (trombadinha, marginal, futuro criminoso, diabo, etc). Isso é um abuso (coletivo) verbal e emocional de uma criança; sendo essa uma das principais causas para crianças e adultos se comportarem inadequadamente. Eu espero que Diego esteja bem, mas eu não me surpreenderia se depois disso tudo o seu comportamento não tenha melhorado. Eu espero que um adulto sensato e carinhoso o esteja ajudando a lidar com seus sentimentos.

Hempmeds se apropria do nome de outras marcas

No dia 18 de novembro de 2015, a empresa Hempmeds registrou o nome da marca Revivid no Brasil. A empresa americana Revivid é a principal concorrente da Hempmeds no País, já que também fabrica óleo rico em CBD e possui uma vasta clientela no Brasil.

O registro foi feito pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) e ainda aguarda exame de mérito. Segue um print da descrição dos produtos que a marca representaria:

registro revivid2

O uso da palavra “medicinal” aparece em todos os exemplos de produtos, significando que a Hempmeds precisaria de uma licença de marketing especifica para vender produtos medicamentosos. Para isso, segundo a Anvisa, é preciso haver prova de segurança e eficácia desses produtos, o que normalmente significa estudos clínicos para cada um desses produtos.

Será que a Hempmeds tem mesmo intenção de usar a marca Revivid? Ou simplesmente registrou o nome para a verdadeira Revivid não conseguir usar sua marca no Brasil?

Quando se trata de propriedade intelectual, especialmente uma marca que já tem sido usada há anos em outro local, é fácil provar que a Hempmeds não possui direitos sobre o nome Revivid. No entanto, o processo é custoso e lento no Brasil, necessitando de advogados, tradução de documentos e uma série de inconveniências para a empresa. Nesse meio tempo, é possível que a Hempmeds tenha mais essa vantagem sobre a concorrência, ou até comercialize produtos com o nome Revivid para confundir pacientes que já utilizavam a marca original.

 

registro revividPor outro lado, a justiça determinou que a Hempmeds está proibida de fazer propaganda do seu principal produto, o RSHO, até mesmo em seu site. Conforme eu havia mencionado em outro post, o RSHO não tem registro na Anvisa e a Hempmeds não tem licença para vender medicamentos no Brasil, mas insistia em declarar que seus produtos são medicinais.

Eles resolveram, então, colocar no site brasileiro a mesma declaração feita no site americano, afirmando que: “Estas declarações não foram avaliadas pela FDA e não são destinados a diagnosticar, tratar ou curar qualquer doença”.

 

hempmedsbrsite

A página oficial da Hempmeds no Facebook, entretanto, ainda afirma que a empresa produz e vende medicamentos:

hempmedsfb

Será que a empresa vai começar a se comportar no Brasil, ou vai continuar com essa conduta duvidosa?

Rir é o melhor remédio – a história de Beto Volpe

 

Imagem de vice.com

Imagem de vice.com

Envolto em escuridão, Beto pôde finalmente enxergar uma luz. O clarão se abria, ofuscando sua visão, até que ele a viu: a silhueta de uma mulher saía da luz e se aproximava dele. Conforme ela se aproximava, Beto conseguia distinguir seus traços. A moça era linda, sorridente e o observava fixamente. Beto não conseguia tirar os olhos dela, petrificado diante de sua beleza. Ela estava vestida de branco. Seria um anjo? Depois de tudo, afinal, ele iria para o céu, fora bem avaliado. Não havia fogo, não havia dor, não havia tristeza. Só aquela moça linda, um anjo, que se aproximava para guiá-lo ao pós-vida. Tanto sofrimento, tanta luta, chegava agora ao fim. A mulher agora estava bem próxima dele, ele a via nitidamente, mas não conseguia proferir uma só palavra. Havia uma áurea envolta dela, como se ela mesma emanasse luz. Quando estava bem perto de Beto, a moça finalmente falou.

– Acordou, Seu Luiz! Que bom! Sua mãe vai ficar feliz – disse a enfermeira.

Beto acordava de um coma que durara três dias. Aos poucos voltou a sentir as agulhas, o desconforto, fome, vontade de ir ao banheiro e uma irritação pulsante. Soltou um grito.

– Achei que estava tendo uma afterlife experience! MAS, NÃO! ESTOU NA MERDA AINDA!

Beto e a morte são tão íntimos que ele se sente à vontade para fazer piadas. Aos 52 anos, ele já passou por 23 cirurgias, três acidentes cerebrais, dois cânceres, duas próteses instaladas, cinco implantes e enfrenta tudo isso com bom humor e 26 pílulas diárias.

– Enquanto eu puder brincar com a morte, ela me deixa quieto – diz ele.

Para ter certeza que eu anotava o seu nome corretamente, ele o soletrou: “V” de velório; “O” de óbito; “L” de lápide; “P” de pêsames; e “E” de enterro. Beto Volpe. Luiz Alberto, mas todos o conhecem como Beto. Nascido em São Vicente, litoral de São Paulo, ele tem algumas certezas na vida. A primeira foi provavelmente o fato de ser gay. Sempre soube, desde criança. Era vítima frequente dos valentões quando pequeno:

– Eu era pequeninho, quatro olhos e fresquinho. Era feio e era inteligentinho, quer dizer, fodeu! Eu era aquele que vivia tomando cascudo.

De família católica, Beto ia todos os domingos à igreja com os pais, o que o deixava muito confuso. Aparentemente, estava rezando para os mesmos santos que o mandariam para o inferno. Quando chegava em casa e ligava a TV, assistia a impressões estereotipadas de homossexuais nos programas de comédia. Não se identificava com nada, vivia em um mundinho só seu, isolado. Até que, aos oito anos de idade, percebeu que não era o único. Empreendedor desde pequeno, Beto passou a montar clubinhos onde outros garotos “fresquinhos” podiam se reunir e se conhecer. Chegou a cobrar taxa de admissão e mensalidade, e o clubinho era um sucesso. Daí ao fim da adolescência, Beto teve sua fase mais sexualmente ativa.

Nascido em 1961, Beto sempre teve um pezinho na música.

– Naquela época, década de 60, se você era um garoto obediente você aprendia a tocar violão. Se você era uma peste, aprendia a tocar acordeom. Adivinha o que eu aprendi a tocar?

Além de tocar acordeom, Beto também adora cantar, e tem uma voz de derreter. A voz grave, dicção impecável, ele canta tão bem quanto fala.

Nos anos 1980, uma sombra pairava sobre a Baixada Santista. Reduto de uma grande comunidade gay na época, o litoral paulista foi foco de uma epidemia de Aids que se espalhava pela população jovem do mundo. Na época, Beto trabalhava para a Caixa Econômica Federal, em uma unidade próxima do Secraids, em Santos. A cidade foi considerada a capital mundial da Aids na época, e o Secraids era o principal local de atendimento e onde se podia fazer o teste de HIV. Assombrado pela possibilidade, Beto decidiu ir fazer o teste e descobrir de uma vez por todas, mas ele não foi discreto quanto à decisão.

– VOU FAZER O EXAME DE AIDS! – disse em voz alta conforme levantava de sua mesa na Caixa.

Os colegas cochichavam em tom de censura para que ele falasse baixo, e olhavam à volta para tentar identificar se algum cliente o havia escutado conforme ele caminhava para fora da agência. Foi de cabeça erguida e iniciou o exame com toda a coragem. Foi quando a agulha saiu de sua veia que ele travou.

– Aí começou todo o filme pornográfico da minha vida, desde os oito anos de idade, começou a passar na minha frente. Eu tinha feito muita coisa, tinha morado em São Paulo. Eu tinha aprontado horrores em São Paulo.

Por que tinha ido fazer o exame? Exame idiota. Era melhor não saber! Com certeza seria positivo, depois de tudo que fez. Quando o resultado chegou: negativo. Beto passou a usar camisinha regularmente, não passaria novamente por esse sufoco. Mas a Aids daria um jeito de encontrá-lo. Para tal, o pegou em seu momento de maior vulnerabilidade: no amor.

O conhecera em São Paulo e estava cada vez mais apaixonado. Não era uma dessas paixões passageiras, era amor de verdade. Eles viveriam juntos, envelheceriam juntos, era para ser. Quando o namorado se mudou para uma cidadezinha do Triângulo Mineiro, Beto concordou com um relacionamento à distância. Duas vezes ao mês, Beto viajava de ônibus durante doze horas para ver o amado, que fazia o mesmo em finais de semanas alternados. A camisinha havia saído da equação há muito tempo.

Em um final de semana em que não se veriam, Beto resolveu fazer uma surpresa e apareceu em Frutal para visitar o namorado, que ainda se encontrava na loja de produtos agrícolas onde trabalhava. A gerente, desconcertada, não conseguiu impedir que Beto o pegasse com outro nos fundos da loja. Por ironia ou por safadeza mesmo, era um moço que conhecera em São Vicente enquanto visitava o Beto. A briga foi feia, o namoro se desfez, mas não sem que a cidade toda ficasse sabendo. Voltou a São Vicente com a dor que só uma traição pode causar.

 

Mudando de hábitos

A assembleia do Sindicato dos Bancários estava lotada. Beto entrou carregado por dois colegas. Estava magérrimo, as olheiras se fundiam à bochecha afundada, parecia que não aguentaria muito tempo. Todos os olhares se voltaram para ele, assustados. As pessoas cochichavam, Beto não conseguia caminhar sozinho. Esse sonho o atormentou repetidas vezes. Beto acordava ensopado de suor, apavorado, o sonho parecia tão real. Foi ao Secraids novamente, mas já sabia qual seria o resultado do exame. Quando foi informado, estava calmo, só concordou.

– Está tudo bem mesmo com o senhor? Não vai fazer nenhuma besteira?

– Não, estou calmo.

Ligou para os parceiros anteriores, mas nunca mais falou com o ex.

Outra certeza na vida de Beto é a de que a maconha salvou sua vida. A fumou pela primeira vez aos quinze anos de idade e foi amor ao primeiro trago. Nunca mais parou. O HIV (vírus da Aids) ataca o sistema imunológico do paciente, diminuindo a contagem de células T no organismo. Essas células são responsáveis pela defesa do organismo e, portanto, são as infecções e doenças oportunistas as mais perigosas para esses pacientes. Com o sistema imunológico comprometido, fungos e bactérias que não afetariam facilmente uma pessoa saudável, se tornam o pior pesadelo do soropositivo. Uma das oportunistas mais comuns é a candidíase, ou o famoso “sapinho”. Beto desenvolveu candidíase esofágica e teve grande dificuldade para se alimentar.

Conforme explica Chris Conrad, autor de “Hemp: O uso nutricional e medicinal da maconha”, é de suma importância que pacientes com Aids se alimentem: “O corpo reage à invasão do HIV da mesma forma que reage a queimaduras, tumores ou cirurgias. Ele demanda nutrientes a mais e, se necessário, começa a transformar as proteínas armazenadas nos próprios músculos do corpo. Os pacientes são instruídos a comer o suficiente para evitar a perda de peso, que ocorre em 98% dos casos de HIV. Para compensar, eles devem consumir quase o dobro da quantidade de proteínas que um indivíduo saudável ingere. Muitas pessoas com Aids relatam que melhoraram o apetite e ganharam peso depois que começaram a fumar cannabis”.

Beto chegou a pesar 34 quilos. Um médico deu bronca em sua mãe para que parasse de implicar com o baseado do filho.

– Ou você para de implicar com o cigarro de maconha dele, que é a única coisa que abre o apetite e, principalmente, mantém a comida lá dentro, ou ele vai falecer – disse o médico, preocupado com o estado de Beto.

Todos os médicos apoiaram o consumo da canábis.

Com a baixa imunidade e a dificuldade para se alimentar, outras infecções se seguiram. Beto teve uma febre de 41 graus e foi coberto por toalhas mergulhadas em água gelada. Foi quando entrou em coma, foi aposentado pela Caixa, e a sua vida mudou drasticamente.

– Olha, se um dia eu parar em algum lugar para prestar contas do que eu fiz aqui na Terra, se isso realmente existir, e perguntarem: “Qual foi a melhor coisa que aconteceu na tua vida?”, “foi ter contraído HIV”. O Santo vai desmaiar, mas vou falar isso mesmo. Foi ali que me forçou a mudar de direção, mudar pensamento. Eu provavelmente seria uma bicha velha lá no guichê. Com grana, ia ter grana, tal, tudo… eu ia continuar como eu era. Nunca fui do mal, mas era meu carro, minha calça, meu isso. E com a Aids o meu olhar passou de dentro para fora. Se eu olhar para a sociedade que eu vivo, a comunidade que eu vivo… tudo isso… de longe foi a melhor coisa que já me aconteceu.

 

California dreaming

A cidade de São Francisco, na Califórnia, EUA, é famosa pela neblina, a arquitetura pitoresca, as ladeiras e os homossexuais. Em uma época de grande preconceito, a acolhedora cidade recebeu a comunidade gay de braços abertos. A partir dos anos 1960, bairros inteiros se tornaram redutos gays, como o Castro, que oferece lojas, cinemas, bares e restaurantes direcionados a esse público. A epidemia de Aids atingiu São Francisco de forma devastadora.

Nos anos 1970, pouco se sabia sobre a doença. Médicos travavam uma batalha para tentar compreender o vírus e buscar tratamentos. O ativista pró-canábis e autor americano, Chris Conrad, conta de sua casa em uma cidade próxima a São Francisco, o que fez com que pacientes de Aids se manifestassem localmente:

– As pessoas lá começaram a notar que os pacientes que fumavam maconha não estavam tão doentes quanto aqueles que não fumavam. Isso fez com que as pessoas percebessem que a canábis tinha, realmente, valor medicinal.

Os portadores de HIV, em especial a numerosa população homossexual, foram grandes ativistas e estavam entre os primeiros grupos a se manifestar a favor do uso medicinal da canábis. Dale Gieringer, de sua casa em Berkeley, Califórnia, onde trabalha como representante da NORML, associação a favor de mudanças nas leis de drogas que envolvem a canábis, explica que São Francisco foi a primeira cidade a aceitar o uso medicinal da canábis. Ativistas como Denis Peron entraram rapidamente em cena e começaram a agir.

– Denis operava um clube de compradores de canábis em São Francisco, onde ele vendia maconha abertamente para pacientes. Ele era muito próximo de Harvey Milk, que foi o primeiro supervisor (cargo político) gay da cidade de São Francisco. O que aconteceu foi que Harvey Milk foi assassinado e a política tomou um rumo de direita. Denis teve que fechar o clube. Mas, ele tinha um grande círculo de amigos na comunidade gay, já nos anos 80, que estava muito bem organizada politicamente, e interessada no uso da canábis, sobretudo para a perda de apetite – explica Dale.

Em 1991, Denis Peron organizou uma iniciativa para legalizar o uso medicinal da canábis em São Francisco, recebendo 80% de aprovação da população. Outras cidades seguiram o exemplo. Em 1996, o estado da Califórnia aprovou a proposta 215, em favor da liberação do uso medicinal, com mais votos do que os que elegeram o presidente Clinton no estado.

Ainda assim, a pesquisa científica acerca do tema era dificultada pelo Governo Federal. A única fonte de canábis para pesquisa nos Estados Unidos vem de uma fazenda do NIDA (National Institute of Drug Abuse), no Mississippi. O médico e pesquisador Donald Abrams, em entrevista concedida a Julie Holland para o livro “The Pot Book” (2010), conta que demorou vinte anos para conseguir aprovação para suas pesquisas envolvendo canábis e Aids. O NIDA só liberava canábis para pesquisas que procurassem os efeitos nocivos da planta, e não o medicinal. Quando finalmente conseguiu a autorização, os pacientes com Aids prontamente aceitaram participar das pesquisas.

Além de ajudar os pacientes a controlar a perda de peso, a canábis também ajuda a reduzir a dor neuropática, que atinge cerca de 60% dos portadores do vírus. Os estudos indicaram uma redução de 34% da dor neuropática, além de aliviar outros sintomas, como dores de cabeça, câimbras na perna e fadiga crônica. Os estudos de Abrams demonstraram a segurança da administração da canábis em pacientes tão fragilizados como os de Aids, que têm baixa imunidade. Isso abriu caminho para a aprovação de novas pesquisas com diferentes enfermidades. Contudo, ainda há poucos estudos em humanos.

Hoje, na Califórnia, pacientes que recebem prescrição médica para o tratamento com canábis recebem uma carteirinha. Com ela, pacientes podem se dirigir a dispensários especializados em maconha medicinal, onde encontram uma variedade de produtos. As variedades de canábis vêm com informações sobre a espécie (sativa, indica ou híbrida), o balanço entre canabinoides (tipicamente a quantidade de THC em relação ao CBD) e quais variedades são mais úteis para cada tipo de enfermidade. Nos dispensários também se encontram comestíveis, como doces contendo canábis, manteigas e óleos medicinais; além de cápsulas, cremes de aplicação tópica (na pele) e outros medicamentos.

A maioria dos médicos ainda não tem expertise em canábis. Poucos sabem quais variedades funcionam melhor para quais enfermidades ou quais métodos de consumo são mais recomendados, a quantidade de cada canabinoide, etc. Ferramentas têm sido criadas para preencher esse vazio, uma delas é a Universidade de Oaksterdam, em Oakland, na Califórnia; a única universidade do mundo especializada em canábis. O coordenador, Aseem Sappal, compara a situação a dar a chave do carro, mas não ensinar a pessoa a dirigir.

– Essa é a importância da universidade – diz ele – é o único lugar onde as pessoas podem aprender a cultivar, cuidar, usar e até lidar com pacientes. Você não pode abrir um dispensário e um cliente de 50 anos chegar para consumir canábis medicinal pela primeira vez e você simplesmente dizer: “Toma aqui”. Essas pessoas precisam de informação, saber o que é melhor e mais indicado para elas.

A universidade também oferece aulas de cultivo, culinária, direito, história, entre outros assuntos relevantes ao tema.

Outra ferramenta hoje disponível é o site e aplicativo (para Android e IOS) Leafly, que fornece informações diretas dos usuários sobre as diversas variedades de canábis. O Leafly oferece informações como o sabor, aroma, efeitos negativos e positivos, além de quais sintomas cada planta ajuda a aliviar e quais pacientes estão usando quais variedades. Essa pode ser uma ferramenta útil ao leigo, que não conhece outros pacientes com a mesma enfermidade se medicando com canábis. O Leafly, porém, se encontra somente em inglês. No Brasil, as coisas têm andado um pouco mais devagar.

 

Ativismo do monstro marinho

Beto iniciou seu trabalho social fundando a ONG Hipupiara. A lenda do Hipupiara é típica de São Vicente, e pode ser melhor contada nas palavras de Beto:

– Diz que em 1564 vivia aqui em São Vicente uma indiazinha muito bonitinha, muito gostosinha chamada Irecê. Irecê era escrava do Capitão Baltazar… “escrava”… mas, o coração e o corpinho dela pertenciam, na verdade, a Andirá. Andirá era um índio que tinha um tacape famosíssimo. “Ai, o tacape do Andirá!”. E todas as noites eles se encontravam ali onde é a ponte pênsil hoje.  Ele vinha de barco dos manguezais, eles se encontravam e o amor acontecia. Até que uma noite, no caminho, ela encontrou uma bruxa. Ela falou assim: “Irecê, você está fazendo uma coisa errada, os seres do mar vão lhe castigar”. E ela tomou um susto, mas logo se lembrou do tacape do Andirá e falou assim: “Desculpa, tá? Tô atrasada”. Aí em uma outra noite de lua, quando ela chega no local de encontro ela vê o barco e o remo do Andirá e nada do Andirá.  De repente, ela ouve um urro pavoroso: “Aaaaarg”. Ela: “Meu Deus! Uma drag queen!”. Ela olhou e não era uma drag queen, era o Hipupiara, que em tupi-guarani significa monstro marinho.

O monstro pode ter sido uma foca ou um leão marinho que se perdeu na correnteza e veio parar em São Vicente. Irecê, assustada, chamou o Capitão Baltazar, que matou o monstro e o expôs em praça pública durante três dias. A lenda diz que o monstro engoliu Andirá. Fazia muito tempo que um monstro não amedrontava São Vicente, até a Aids vir à tona. A ONG Hipupiara auxiliava qualquer pessoa que tivesse contraído o HIV e organizava grupos de ativistas para exigir os direitos dos pacientes.

A primeira bandeira que Beto levantou no ativismo foi a dos efeitos colaterais.

– Antes de ter fundado a ONG, eu já comecei a sentir muito efeito. Eu comecei a tomar o coquetel em 96. Em 97 eu já estava com o meu rosto todo afundado. Os membros afinados, aparecendo veia e tudo. Eu estava achando que estava saltando a veia, mas não era. Era a gordura. A gordura que recobre… todo mundo tem uma capa de gordura. Essa gordura aqui, eu sou zerinho.

Para preencher o rosto, Beto implantou polimetilmetacrilato, que é injetado na pele e absorvido pelo organismo. O rosto afundado desapareceu, dando lugar a bochechas volumosas e de aparência saudável. A sua autoestima aumentou e ele se sentiu mais confiante. Ao pensar em todas as pessoas que não podiam pagar por esse procedimento, decidiu que ele deveria ser de graça, entregue pelo SUS (Sistema Único de Saúde). E lá foi Beto até Brasília incomodar o Congresso.

O tema ainda era tabu, ninguém queria falar sobre Aids. Dificilmente uma sessão abria com esse tema, então Beto organizou uma estratégia para ser ouvido. Sempre que ele via uma mesa cheia, entrava na sala. Quando abria para debate, ele pedia para falar, não importando qual fosse o assunto a ser discutido:

– Olha, desculpa, eu não tenho nada a ver com o assunto, mas eu estou aqui falando dos efeitos colaterais do coquetel – dizia, sob olhares de censura.

Beto diz que o governo evitava tocar no assunto para não assustar as pessoas e elas deixarem de tomar o coquetel. Mas as conversinhas, papos entreouvidos, todas as incertezas sobre o que era culpa do HIV e o que era culpa do coquetel, assustavam os pacientes ainda mais. Não havia certeza sobre nada, não havia informação competente.

Finalmente, em 2004, a portaria saiu. O diretor da sessão no congresso puxou Beto de lado e falou:

– Eu vou falar na mesa daqui a pouco, mas quero que você seja o primeiro a saber. Vai ser assinada uma portaria na semana que vem colocando o preenchimento e outras coisas no SUS.

Conquistas como essa são as medalhas de Beto, que nunca pediu nada em troca de seu trabalho na ONG. Em 2007, o Supremo Tribunal Federal abriu uma sessão para que teses sobre medicamentos de alto custo fossem defendidas por especialistas e entidades. Duas das teses escritas e representadas pela ONG Hipupiara foram selecionadas.

– A Associação dos Magistrados do Brasil de um lado, o presidente do Conselho Federal de Medicina de outro e eu. Hipupiara lindo ali no meio – diz Beto.

Gilmar Mendes, que presidia a sessão, chamou Beto para apresentar sua tese:

– Ouviremos agora, o Dr. Luiz Alberto Volpe.

– Presidente, apenas uma breve correção, se você me permite, eu não sou doutor, não.

Ele já tinha entrado na justiça duas vezes para conseguir o medicamento que precisava. A vagarosidade burocrática da Anvisa e do SUS deixavam muitos pacientes na mão. Novos medicamentos apareciam, mas demoravam para ser aprovados no Brasil e, por serem medicamentos altamente controlados, que não podiam ser vendidos, eram distribuídos pelo SUS, que ora demorava com a papelada, ora não tinha o remédio.

Cida tivera o mesmo problema com o Frisium de Clárian. Quando o SUS não tinha o medicamento, ela tinha que se virar para comprá-lo, para que Clárian não morresse pela própria abstinência do remédio tarja preta. Os medicamentos para Aids, no entanto, não estavam disponíveis para venda. Se faltar, faltou. O paciente teria que entrar na justiça e depender da morosidade judiciária. Beto não podia mais deixar isso acontecer. Defendeu um sistema que acelerava o processo de aprovação e facilitava o acesso aos medicamentos. As teses foram acatadas pelo Tribunal.

Beto é possivelmente a única pessoa do mundo a ter sua própria ponta de fêmur guardada em casa, em um vidrinho de geleia, preservado em éter. Ao virar o vidrinho de um lado para o outro, é possível enxergar a parte de dentro necrosada, parte do efeito colateral da medicação. A parte externa do osso não é lisa e redonda como deveria ser, apresenta diversas superfícies e angulações, como uma bolinha de papel amassado. Conforme o osso se deteriorava por dentro, o peso do corpo o comprimia e deformava, causando dores – como ele mesmo diz, em tom de ironia – “deliciosas”.

– Esse ossinho já foi esfregado na cara de três ministros. É isso aqui que é efeito colateral! Não é vômito, não é caganeira! É isso! – conta Beto, e prossegue rindo após notar meus olhos arregalados – A cara que você fez agora é a mesma que eles faziam.

A maconha o ajudou a superar a dor óssea até que o osso fosse substituído por próteses. A recuperação da cirurgia também não foi fácil. Beto só conseguia dormir depois de um baseado. Beto participou como palestrante de um evento na USP sobre o uso medicinal da canábis. Ele falaria logo após um doutor californiano, que declarou que a única dor que a maconha não conseguia aliviar é a dor óssea.

– Gente, antes de eu falar, – começou Beto – eu não tenho doutorado nem nada, mas eu tenho que discordar do colega da Califórnia…

Beto acredita que a maconha tenha um efeito analgésico indireto também, distraindo o usuário da dor para que pare de pensar nela momentaneamente.

– A gente alimenta muito a dor, – diz ele – se você para de alimentar, de pensar nela, ela diminui.

 

Sessão de terapia

Beto chegou na Santa Casa de Santos para a sua primeira sessão de quimioterapia e se deparou com um ambiente extremamente depressivo. Os pacientes estavam todos quietos, vivendo suas próprias agonias, contemplando aquele momento de incerteza. Uma enfermeira se aproximou dele e perguntou:

– E quando é que o senhor vai querer cortar o cabelo, Seu Luiz?

– Ué? Precisa? Não cai tudo sozinho?

O paciente vizinho riu do comentário. Beto encontrou ali uma abertura. Ele passaria dez meses em tratamento, precisava melhorar o humor da sala. Puxou conversa com o senhor que deu risada, e não demorou muito para as piadas começarem.

– Diz que a ruiva… a gente não pode mais falar de loira, então vamos falar da ruiva… a ruiva encontrou uma amiga que fazia tempo que ela não via e falou: “Menina! Você está um espetáculo! Perdeu aqueles quilinhos a mais, está enxutinha! E esse cabelinho curtinho, super fashion! Tá fazendo o quê?”. A amiga respondeu: “Quimioterapia”. E a ruiva: “Jura? Na USP ou no Mackenzie?”.

Os pacientes a sua volta entreouviam e davam risadas animadas.

– Qual é o melô do câncer de mama? – Beto cantarolava – Saudosa eterna Clara Nunes; Era um peito só; Cheio de promessa…

Mulheres mastectomizadas passaram a rir também. Não demorou muito para Beto fazer amizade com todos os pacientes da sala. Uma enfermeira se aproximou por trás de Beto e cochichou:

– Senhor Luiz, você não deveria contar essas piadas para esse tipo de gente.

– Meu amor, esse tipo de gente é igual a você, só muda a cor da roupa. A qualquer momento você pode estar do lado de cá. No começo da tarde tinha uma doença oprimindo todo mundo, agora está todo mundo tirando sarro dela.

O câncer apareceu pela primeira vez em 2003, e estava na medula, no pescoço, no pulmão, no fígado, no baço, no retroperitônio e na virilha. Sua imunidade estava ótima, não se tratava de uma oportunista; e Beto é o primeiro a ter câncer na família. Ele suspeita que esse tenha sido mais um efeito colateral da medicação.

Ele ficou surpreso com a quantidade de mulheres fazendo quimioterapia, eram muito mais numerosas. A sua última sessão caiu no dia 8 de março de 2004, Dia Internacional das Mulheres. Beto chegou com um buquê de rosas, e distribuiu as flores entre as mulheres. Uma senhora bem velhinha, ao receber a rosa, debulhou em lágrimas. Beto se assustou, mas ela logo explicou:

– Filho, essa é a primeira flor que eu ganhei na minha vida.

Beto pensou na sorte que tinha. Ele tinha uma família que o apoiava, convênio médico amplo que cobria aquilo que o SUS não oferecia, uma condição de vida favorável, teve oportunidade de estudar. As pessoas o viam como um exemplo de superação, mas ele tinha tanto a seu favor. Aquela senhora se tornou um de seus ídolos.

– Eu pensei: que merda de vida que essa mulher teve! – diz ele – E ela está lá, brigando por ela. Esses são os meus ídolos.

 

“Não antes da minha mãe”

O segundo câncer foi descoberto em 2008, durante uma cirurgia de hemorroida. O câncer estava no reto, parte final do intestino, o que levou a mais cirurgias e tratamento com radioterapia. Apesar de os médicos afirmarem não haver sequelas permanentes, o tratamento acabou com a vida sexual passiva de Beto. Diferente da quimioterapia, que ocorre a cada quinze dias, a radioterapia era feita diariamente. Fazer amizade foi muito mais fácil, encontrando as mesmas pessoas todos os dias no mesmo horário. Logo, as tirações de sarro começaram no Hospital do Câncer em São Paulo.

Ao notar que os médicos andavam para lá e para cá de jaleco e estetoscópio, inclusive fora do hospital, Beto não pôde deixar de protestar essa atitude um tanto quanto arrogante. No dia seguinte, apareceu de jaleco e estetoscópio.

– Se esse cara leva coisas pro hospital, de fora para dentro… – explica Beto – Ou pior! Levar coisa de dentro, que está passando por tratamento, está resistente, para fora. E o pessoal faz desfile de jaleco e estetoscópio no barzinho da esquina, na Caixa Econômica, no ponto de ônibus.

Um médico se aproximou e indagou a razão por que Beto, um paciente, andava para lá e para cá de jaleco no hospital.

– Não sei, doutor, – respondeu – deve ter alguma coisa muito perigosa na região porque vocês não tiram isso por nada. Eu estou me protegendo também.

Foi com esse bom humor que Beto foi sobrevivendo a uma série de tratamentos, efeitos colaterais e doenças oportunistas. Ganhou dois apelidos dos médicos: Robocop (devido aos implantes) e Highlander (em homenagem ao personagem imortal dos filmes e séries de mesmo nome).

– Eles dizem que pacientes com HIV vivem em média onze anos. Eu enfio os outros quatorze onde? – diz Beto.

Uma das palavras que mais odeia é “terminal”. Todas as vezes que os médicos explicavam para sua mãe que ele estava terminal, a mãe dava broncas nos médicos. Beto não suporta a ideia de sua mãe ter que lidar com sua morte:

– Terminal você entende o quê? Que não tem mais jeito, acabou. Isso faz um estrago na cabeça da pessoa.

Depois que o irmão e o pai faleceram, Beto adotou um mantra: “Não antes da minha mãe”. Sempre que se encontra em um momento crítico no hospital, ou a caminho dele, recita para si mesmo a frase, repetidas vezes.

– Ninguém merece perder dois filhos, pelo amor de Deus!

Paulo nasceu quando Beto tinha onze anos. Apesar da diferença de idade, se davam bem. Beto já tinha Aids quando Paulo foi diagnosticado com transtorno bipolar.

– Após três tentativas, na quarta ele conseguiu – conta Beto, a expressão sombria – em 2005 ele se matou. A gente não se recuperou até hoje. A partir de então eu me proibi de morrer antes dos meus pais.

 

A terceira certeza

– O meu nome é Beto Volpe, tenho HIV, sou homossexual, usuário de drogas e sou respeitado por isso tudo.

Ele faz questão de ser direto e não esconder nada sempre que dá entrevistas. Se comporta da mesma forma em suas palestras. Ele começa com uma parte mais teórica sobre a Aids, sem entrar muito em números específicos, e depois passa para o seu depoimento. Sempre com muito humor, usa pantufas de pata de dinossauro e outros assessórios cômicos para animar o ambiente. Já foi parar em todos os estados e uma porção de cidades para palestrar, nunca cobrando nada, só pede ajuda com transporte e um lugar para ficar. Ele ensina que a positividade é o atributo mais importante de um indivíduo para se proteger das situações mais desafiadoras, e que pode salvar vidas.

A canábis pode ter contribuído muito no seu caso.

– Ela me desestressa, dá uma relaxada – explica – você dá risada. É um estado diferente, o riso fica mais fácil. Você percebe a realidade a sua volta de outra maneira, mais engraçada, mais profunda.

Ele aprendeu muito, e continua aprendendo. A cada palestra, um lugar novo, pessoas novas, novas experiências. Ele divide o que o HIV o ensinou e tenta dividir esse aprendizado com quem quiser ouvir.

– No fundo eu acho que o HIV veio mostrar para todo mundo qual é o jeito certo da gente fazer. Tem que fazer exercício físico regularmente, alimentação balanceada, viver de uma maneira saudável, positiva, não esquentar muito a cabeça com problema. E a gente está tendo que fazer isso.

Assim Beto tenta levar a vida, sempre tirando coisas boas de situações ruins. E a principal certeza de sua vida:

– Rir é o melhor remédio. Eu não tenho dúvida disso.

 

*Essa história faz parte do livro “Ervas Daninhas”.

** Beto Volpe é autor do livro “Morte e Vida Posithiva”. Clique aqui para saber mais!

Clárian e a Canábis

Clárian CarvalhoA tela em branco do Google: tudo sempre começava por ali. A cada busca uma nova jornada por respostas. Ela precisava saber, entender o que afligia sua filha; o que outros fizeram; quais eram os tratamentos experimentais. O que os médicos recomendavam; o que os pais recomendavam? Degenerativo? Como retardar o progresso da doença? Neurológico? Raro? Poucas opções. Poucos sobreviventes. O que fizeram os sobreviventes? Alternativas? Falsos positivos? Exames diagnósticos?

Foram dez anos assim, sem diagnóstico. A cada suspeita, uma busca. A cada busca, um desespero. Um médico chegou a ameaçar:

– Se você não parar de ir procurar no Google, eu não vou mais te falar quais são as suspeitas.

Não tinha jeito. Maria Aparecida, mais conhecida como Cidinha, – mas que por razões de praticidade a chamo de Cida – não conseguia se segurar. Precisava saber o que fazer, como agir. Ela delineava os próximos passos em sua mente, enquanto fazia as pesquisas. Trazia os resultados para os médicos, pedia opiniões e sugestões. Por vezes, chegava aos prantos no consultório, assustada com o que havia encontrado. A frase mais comum: “Não tem cura”. Foi a Dra. Maria Teresa Chamma que desconfiou da verdadeira doença pela primeira vez. E lá foi a Cida sentar em frente ao Google.

Síndrome de Dravet, digitou. Os resultados não eram nada promissores. Em meio ao caos de informações, textos científicos, notícias, imagens na cor roxa, grupos de pacientes e soluços, Cida encontrou a Charlotte. O artigo da CNN estava em inglês, mas Cida identificou a palavra Dravet e decidiu jogar o texto no Google Tradutor. Conforme lia o texto traduzido palavra por palavra, ao pé da letra, de difícil compreensão, mas razoavelmente inteligível, Cida começou a sentir seu coração palpitar. Tratava-se de uma animação que não sentia há tempos. Voltou ao artigo, um vídeo acompanhava a matéria. O vídeo era simples, um “antes e depois” bem ilustrativo. A Charlotte antes da canábis era uma garotinha letárgica, convulsionando a cada 25 minutos, chorando, mas sem conseguir falar ou andar. O olhar da menina de quatro anos não acompanhava nada, ela era um casco vazio, quase um fantasma. A Charlotte atual era outra pessoa, o vídeo a mostrava andando de bicicleta (com rodinhas, é claro). Cida sentiu a esperança explodir dentro de si. Havia uma chance de salvar a Clárian.

 

– A Clárian era um bebê muito bonzinho – disse Cida, sentada a uma mesa do Starbucks – ela estava sempre sorrindo.

A mesa ficava em um corredor do shopping Tatuapé, na zona leste de São Paulo. Evandro, filho mais velho de Cida, levara Clárian para almoçar enquanto Cida e eu conversávamos.

– A única coisa que eu percebi antes de ela ter a primeira crise, foi que eu fazia assim para ela no berço – Cida moveu os braços como se fosse pegar um bebê – e ela olhava para uma mão, olhava para a outra, e não levantava os bracinhos.

Ao comentar com o pediatra, o médico não achou estranha a reação de Clárian.

– Cada bebê se desenvolve de um jeito – dizia.

Aos cinco meses de idade, no entanto, Clárian teve sua primeira gripe. O instinto de mãe fez com que Cida trouxesse a Clárian para dormir com ela.

– Eu fiquei com dó de deixar ela dormir no berço – diz ela.

Cida é bancária e trabalhava no Bank Boston, hoje Banco Itaú. A licença maternidade havia terminado e ela queria ficar mais com a filha quando estivesse em casa. Já em seu quarto, Cida percebeu que a temperatura da Clárian estava subindo. Preocupada com a febre do bebê, resolveu levá-la para a sala, onde seu marido, Fábio, assistia à televisão. Sob a iluminação da sala de estar, Cida notou um movimento estranho nos olhos da filha.

– O olhinho dela ficou assim: pra lá e pra cá, pra lá e pra cá – diz Cida – eu nem imaginava que aquilo era uma convulsão.

O desespero começou quando os lábios de Clárian começaram a roxear. Enquanto Fábio fazia respiração boca a boca, Cida pegava Evandro, então com nove anos, em seu quarto. Correram todos ao pronto-socorro. A médica não disse nada, pegou o bebê e a levou correndo para dentro. Clárian estava tendo uma parada respiratória.

– Não tenho nem palavras para descrever como foi para nós – diz Cida, entre um soluço e outro – ela não conseguiu nem pegar a veia dela, porque o acesso dela é muito difícil. Quando ela voltou, e demorou muito para ela voltar, a Clárian estava com uma agulha bem grossa no osso da perna. Foi o único acesso que conseguiram, o acesso no osso. Eu fiquei muito impressionada com tudo aquilo. Ela precisava de UTI urgente e lá não tinha UTI.

Ficaram então, pai, mãe e irmão aguardando uma ambulância, mas a ambulância não veio. Todas as que são equipadas para UTI estavam ocupadas e Clárian não poderia ser transferida em uma ambulância qualquer. Aguardaram e continuaram aguardando, até que, pela manhã, Cida ligou para a chefe, para avisar que não poderia ir trabalhar. Explicou o que estava acontecendo e, para o seu alívio, enviaram uma ambulância do banco, pertencente ao corpo de bombeiros, para transferir a Clárian. A ambulância estava devidamente equipada e chegou rapidamente, levando a família para o hospital São Luís.

No caminho, Clárian teve outra crise, seguida de uma parada respiratória. Uma crise atrás da outra, médico atrás de médico. Nada parecia ajudar. Os médicos declararam que ela não iria resistir. E assim foi, nos próximos dez anos. A cada crise severa uma corrida ao hospital; a cada internação as más notícias: “Você tem que se preparar”, “ela não vai resistir”, “ela não vai andar”, “ela não vai falar”. Os médicos sempre vinham acompanhados de um psicólogo, que estava lá com a única função de preparar os pais para a morte da filha. Aos dez anos de idade, Clárian passara por dezessete internações (os pais só contam as internações de mais de vinte dias, já não sabem mais por quantas internações mais curtas ela passou), sete em UTI, onze pneumonias, três paradas respiratórias. A cada visita ao hospital, Cida era preparada para a morte iminente da filha, sem que os médicos soubessem explicar o que ela tinha. Depois das primeiras vezes, Cida desistiu de responder ao psicólogo. Apenas concordava, mas tinha uma resposta pronta em sua mente:

– Não! Algum jeito tem que ter! Eu não vou ficar parada – ela pensava.

Para tentar descobrir o que Clárian tinha, foram feitos muitos exames. Para compreender o motivo para sua hipotonia (problema para controlar a temperatura do corpo), foi feita uma biópsia do músculo do braço – em que parte do músculo é removida para análise – que deixou uma cicatriz. Clárian também passou por inúmeras máquinas de ressonância; raio x; aparelhos que dão choque para ver como o músculo reage; exames de sangue; exames de urina; exames de todos os tipos.

O desenvolvimento de Clárian foi lento e os medicamentos a deixavam dopada. Ela precisou de fisioterapia para conseguir sustentar sua cabeça e poder sentar, depois para engatinhar e assim por diante. Quando começou a ir para a escola, teve dificuldades para se concentrar.

– O topiramato tira muito a concentração. A Dra. Teresa nem quer aumentar mais a dose porque ela já tem um atraso na escola. Você percebe que ela tem um atraso cognitivo – explica Cida.

Diversos medicamentos foram experimentados para ver qual se adaptava mais à condição da Clárian. Sem diagnóstico, era uma questão de controlar as convulsões e ver o que a ajudava. Encontrar uma dosagem também não era fácil, pois era necessário encontrar um equilíbrio entre os efeitos benéficos e os efeitos colaterais. Um medicamento chamado Trilepital acabou desencadeando ainda mais crises generalizadas em Clárian. O depakene, um anticonvulsivante, teve que ser substituído ao danificar os rins de Clárian; por pouco ela não teve que passar por hemodiálise. Outros efeitos assustavam Cida de tempos em tempos. Uma vez, quando estava trabalhando, recebeu uma ligação da escola:

– A gente não sabe o que está acontecendo com a Clárian. Ela não está andando.

Cida correu para a escola e levou Clárian ao hospital. A sua cabeça se enchia com as possíveis doenças degenerativas. Estaria Clárian perdendo movimentos?

– Ela não parava em pé, ficava mole – diz ela.

Depois de uma série de exames, a resposta: Clárian estava simplesmente dopada. O medicamento foi retirado do tratamento e ela voltou a andar. As convulsões, no entanto, continuavam ocorrendo com frequência, até dezessete por dia. Quando a Dra. Teresa suspeitou que fosse síndrome de Dravet, recomendou um medicamento que não estava autorizado pela Anvisa, o keppra. Os pais de Clárian tiveram que importar o remédio sem receita por, digamos, rotas alternativas. Deu certo: as crises diminuíram.

Clárian passou a tomar o keppra duas vezes ao dia; frisium, uma vez por dia; gardenal, também uma vez; e o topiramato, duas vezes ao dia. São medicamentos pesados, controlados e caros, mas diminuíram as crises para uma a cada dez dias. Clárian estava melhor do que nunca (mais tarde, no entanto, as convulsões aumentaram novamente para cerca de 15 por mês). Agora, restava o diagnóstico. Um exame genético era necessário, mas ele não existia no Brasil. A Dra. Teresa, mais uma vez, apareceu com uma solução:

– Ela ficou sabendo de uma amiga dela, que estava fazendo uma tese de doutorado na Unicamp sobre o Dravet, – conta Cida – então ela nos indicou.

 

Até que ponto?

A família Carvalho foi de carro até Campinas fazer os exames, onde o sangue foi recolhido tanto de Clárian quanto dos pais. O estudo precisava de 200 voluntários que, como eles, teriam material genético colhido para análise. A família foi informada que os resultados demorariam a sair, já que o estudo precisava atingir o número pretendido de voluntários e dependia de verbas. Mais uma vez, os Carvalho aguardaram, pacientemente. Dois anos depois, no entanto, as crises de Clárian começaram a se intensificar. Clárian demorava muito para se recuperar das convulsões, que se tornavam cada vez mais severas. Por vezes, as contrações musculares em suas pernas eram tão fortes que elas alcançavam a cabeça. A paciência de Cida começou a se esgotar. Cada vez com mais frequência, Cida ligava para o setor de pesquisas da Unicamp, perguntando sobre o resultado do estudo.

– Ainda está em andamento – respondiam.

Nesses dois anos, Cida não parou de pesquisar sobre o Dravet. Ela já havia mandado o artigo sobre a Charlotte para a Dra. Teresa e perguntou se podia continuar enviando o que encontrasse. A neurologista concordou e Cida enchia o inbox de seu Facebook com artigos científicos e outras informações sobre o uso da canábis no tratamento da Síndrome de Dravet. Convencida da evidência, a Dra. Teresa declarou em uma das consultas da Clárian que viajaria aos Estados Unidos, para uma conferência sobre o uso medicinal da canábis. Emocionada, Cida abraçou a médica.

– Quando eu voltar, na mesma semana eu quero ver a Clárian – a médica pediu.

Cida continuou tentando ligar para a Unicamp, sem obter novidades. Em sua próxima consulta com a Dra. Teresa, Cida suplicou:

– Doutora, por favor, me ajuda. Tenta falar com a sua amiga.

Teresa se dispôs a ajudar, mas não conseguiu:

– Ela não está mais fazendo a tese, saiu. Eu perguntei e ela disse que não estava mais lá, não tinha mais acesso – disse.

Em uma de suas passagens pelo hospital, conversando com uma enfermeira, Cida conseguiu uma informação. A enfermeira disse conhecer uma moça chamada Camila, que trabalhava com a Dra. Iscia, que fazia parte da pesquisa. Cida pediu o contato dela e conseguiu um e-mail. A resposta finalmente veio: a investigação estava concluída e bastava aguardar em uma fila para receber o resultado dos exames. Quanto tempo? Ninguém sabia dizer. Mais uma vez a família aguardou. O próximo contato de Cida não foi tão amigável:

– Mas, espera aí! A minha filha está tendo crises! Nós nos prontificamos a levá-la, colhemos sangue. Eu só preciso saber: sim ou não! É só o que eu preciso.

– Não dá. Nós não damos a resposta assim, tem uma fila. A senhora precisa aguardar.

Era junho de 2013. O aumento de vinte centavos na tarifa do ônibus havia irrompido protestos no país inteiro. Imagens de cidadãos sendo atacados com gás lacrimogênio e jornalistas sendo atingidos por balas de borracha enfureceram a população. Logo, milhões estavam nas ruas. A avenida Paulista ora parecia uma grande festa, ora um campo de batalha. Sentindo-se abandonada e desprezada por aqueles que a deveriam ajudar, Cida só queria se juntar à multidão, gritar de raiva, mostrar a sua insatisfação. Em uma quinta-feira de protestos, ela estava decidida a engrossar o mar de pessoas que marcharia pelo centro da cidade.

– Eu estava de saco cheio! – afirma Cida, lembrando-se do telefonema que fez do escritório naquele dia.

Decidida a tomar as rédeas da situação, Cida ligou para o Genoma e pediu informações sobre como fazer o teste diagnóstico pago para síndrome de Dravet, que na época já estava disponível. Ela sabia que não sairia barato e que talvez demorasse, mas não podia mais esperar pela pesquisa, precisava de um plano de tratamento para a Clárian.

– O teste demora um mês para sair e o preço é quinze mil reais – disse a voz do outro lado do telefone.

Quinze mil reais. Cida desligou o telefone, caminhou até sua mesa, sentou, apoiou o rosto nas mãos e caiu aos prantos. Precisou ser acudida pelos colegas de trabalho, sua pressão sanguínea subira e ela estava em pânico. Ela não tinha quinze mil reais e, devido aos problemas financeiros que enfrentava, não podia fazer um empréstimo, pois já estava endividada. Desprovida de forças, não conseguiu ir à manifestação.

Nos próximos meses, Cida e Fábio se dedicaram a encontrar formas de quitar as dívidas e conseguir um empréstimo. Na pressa, contudo, acabaram ainda mais endividados.

– Tudo que você faz sem pensar – explica Cida – você quer atingir um objetivo e acaba se dando mal. Eu me dei mal financeiramente, mais ainda. Estou me recuperando agora.

Sentindo-se em um beco sem saída, Cida continuou ligando para a Dra. Iscia, atrás de respostas. Ela ligava para o centro de pesquisas e pedia pela doutora, mas sempre diziam que ela não estava. Cida perguntava quando ela estaria, para que retornasse a ligação, e sempre que recebia uma data ou um horário, ela retornava. No entanto, a resposta era a mesma: “Ela não está”. Até que, algumas semanas antes do Natal, Cida recebeu a informação de que a Dra. Iscia estaria presente, à uma hora da tarde, com toda a certeza. Cida ligou às 13h; ligou às 13h15; ligou às 13h30; ligou às 13h45 e ela não estava. Ligou novamente às 14h15 e recebeu uma resposta definitiva:

– Olha, ela não veio.

– Como assim? Ela não está, não está e agora não veio? – indagou Cida, já pronta para desabafar – Agora você vai me ouvir!

Cida jogou toda sua angústia no funcionário ao telefone, contou tudo o que estava acontecendo com a Clárian, sobre as crises, as dificuldades, as dúvidas. Contou que sua saúde também não era mais a mesma. A cada crise de Clárian, Cida sofria junto com a filha, sua mão fechava apertada até as unhas encravarem na palma da mão, enquanto ela tremia de medo. Cida sentia o corpo todo doer depois que as crises passavam, de tão tensa que estava. Fábio diz que Cida convulsiona junto com a Clárian. Ela suplicava por ajuda:

– Por favor, você vai ter que me ajudar. Eu não estou te pedindo, eu estou suplicando. Você tem noção do que é isso? Ela só precisa disso, para a médica dela correr atrás de um remédio mais potente.

– Tá bom – o atendente não conseguiu mais negar ajuda – espera só um pouquinho.

Em instantes, outra voz apareceu na linha.

– Pois não – disse a Dra. Iscia.

Já mais calma, Cida começou a explicar o que tinha dito ao atendente. A médica a escutou, pacientemente.

– Eu não posso ficar nessa fila, porque as crises da minha filha não podem esperar.

– Eu não posso fazer nada, você tem que esperar a fila – disse a doutora, calma.

– Eu não posso esperar a fila! Eu não posso esperar! – Cida se controlava para não aumentar o tom de voz, sua voz saía como um grito abafado – Eu tentei pagar particular, mas não consigo, são quinze mil reais.

– Eu sei que é esse valor. É por isso que a gente está desenvolvendo essa pesquisa aqui na Unicamp.

– Então, por favor, me ajuda! Eu não estou pedindo um quebra-galho, é a vida da minha filha!

– Eu vou tentar fazer alguma coisa por você. Você pode vir aqui, ou eu falo com a sua neurologista.

– Eu vou agora, se você quiser.

– É melhor eu falar com a neuro, pede para ela me mandar um e-mail.

– Você vai responder mesmo? – desconfiou Cida.

– Vou.

Até hoje, Cida não sabe para que servia a tal da fila, mas a resposta finalmente veio. Na mesma semana em que Maria Teresa voltava dos Estados Unidos, Cida levou Clárian para uma consulta. Era dia 20 de dezembro, mas Cida sentiu como se o Natal já tivesse chegado. Ela recebeu o diagnóstico da filha e uma notícia que renovou suas esperanças:

– Eu fiquei de boca aberta, Cidinha – disse Teresa, satisfeita – as crianças com síndrome de Dravet tratadas com canábis estão ótimas. Ótimas! Eu não estou nem aí para o que vão pensar, o que vão falar. Eu vou levantar a bandeira da canábis junto com você. Nós vamos atrás disso e eu vou te ajudar.

As lágrimas escorriam pelo rosto de Cida enquanto ela agradecia a médica repetidamente. A esperança novamente se acendeu dentro dela; havia onde se apoiar, alguém com quem contar. Cida não podia estar mais feliz.

 

A canábis

Agora que tinha um diagnóstico, Cida podia contar aos médicos, quando levava Clárian ao hospital, exatamente o que ela tinha. No entanto, isso não parecia ajudar.

Família de Clárian na Marcha da Maconha em São Paulo.

Família de Clárian na Marcha da Maconha em São Paulo.

– Dra.. o quê? – perguntavam os médicos.

A situação logo mudou. A revista Super Interessante publicou uma edição especial sobre a canábis, na qual o principal artigo tratava do uso medicinal. Em março de 2014, a matéria sobre o caso de Any Fischer, menina de quatro anos com epilepsia refratária que foi tratada com sucesso usando óleo de cânhamo em Brasília, desencadeou uma mudança radical no comportamento da imprensa. No segundo semestre de 2013, a revista Veja havia publicado uma longa matéria sobre os malefícios da canábis, sem fazer qualquer menção a possíveis benefícios. Mesmo os artigos sobre casos do uso medicinal salientavam os efeitos negativos da planta. Na mesma época, contudo, o documentário “Weed”, de Sanjay Gupta, médico consultor da CNN, que tinha Charlotte Figi como protagonista, havia sido lançado. Ao ser disponibilizado no Youtube, o documentário atingiu o mundo todo e, em um esforço conjunto de ativistas, legendas foram adicionadas em dezenas de idiomas. Em 2014, quando muitos médicos mal conheciam a doença, o mundo começava a aprender a pronunciar a palavra “Dravet”.

Diversos casos começaram a aparecer na mídia brasileira. Em abril, quase todos os veículos traziam novidades sobre o uso medicinal da canábis. A planta parecia recém-descoberta, uma novidade científica. O vídeo “Ilegal”, da campanha Repense (iniciativa de Tarso Araújo, a campanha visa defender o uso medicinal da canábis e informar a população sobre o assunto) sobre o caso de Any, foi lançado no Youtube e se tornou viral. Os dramáticos casos de epilepsia se destacavam constantemente nos jornais, revistas e noticiários televisivos, até que, finalmente, Katiele Fischer (mãe de Any) apareceu no Fantástico. Depois disso, não demorou muito para que ela conseguisse uma autorização especial para a importação do óleo de cânhamo.

O cânhamo é um tipo de canábis comumente usado na produção de fibra vegetal. A planta cresce até seis metros de altura, e tem uma concentração mais baixa de canabinoides. O governo americano aprovou a produção de extrato de canábis que fosse feito com cânhamo, com no máximo 0,6% de THC, uma quantidade muito baixa, que não dá barato. Como há pouco dos outros canabinoides também, para obter o CBD, os produtores espremem uma grande quantidade da planta até conseguir um óleo que possa ser usado como medicamento. E assim surgiu o RSHO (Real Scientific Hemp Oil), da empresa HempMed. A Anvisa passou a autorizar a importação desse óleo para as mães que provavam na justiça que seus filhos não respondiam a nenhum outro tratamento disponível.

Sob forte pressão da mídia, a Anvisa abriu um canal por onde pais pudessem enviar a documentação de seus filhos e adquirir autorização para importar o medicamento. A burocracia, claro, era enorme e a autorização demorava a chegar. Diversos pais tentavam fazer essa importação de forma ilegal, para ao menos saber se o tratamento funcionaria com seus filhos, antes de passar por toda a burocracia da Anvisa. Foi o que fez a família Carvalho.

Um amigo da família viajaria a Miami. Cida comprou o medicamento online e pediu que a entrega fosse feita no hotel em que o amigo estaria hospedado. Ele enfiou o óleo na mala e o contrabandeou ao Brasil com sucesso. A chegada do óleo coincidiu com a Marcha da Maconha em São Paulo, no dia 26 de abril de 2014. Cida havia perdido a chance de acompanhar as manifestações do ano anterior, mas não perderia dessa vez.

Às 4h20 da tarde de sábado, a marcha iniciou a caminhada. A concentração havia sido no vão do Masp; a multidão caminhou em direção ao centro, descendo a Rua Augusta e, em seguida, a Rua da Consolação, terminando o trajeto na Praça Roosevelt. A Polícia Militar afirma que havia três mil pessoas acompanhando a marcha, enquanto o coletivo Marcha da Maconha declara que havia mais de dez mil. A linha de frente era formada pelo bloco de usuários medicinais. Segurando cartazes e faixas, Cida e Fábio seguiam acompanhados do farmacêutico Paulo Orlandi-Mattos, da Unifesp, o professor e pesquisador de história da USP (Universidade de São Paulo), Henrique Carneiro, Maria Antonia Goulart, entre outros pacientes e ativistas. A família Carvalho foi toda recrutada para participar, vestindo camisetas estampadas com a cruz vermelha sendo completada por uma folha de canábis, e uma borboleta lilás, que representa a síndrome de Dravet. Até mesmo a Clárian participou da concentração, mas não acompanhou a marcha para evitar grandes aglomerados de pessoas, que podem desencadear crises.

Cida encontrou outras mães de crianças com epilepsia, como a Ariane Maldonado, cujo filho recém-nascido se encontrava internado no Hospital Alvorada, sofrendo crises graves. Ariane vestia uma camiseta estampada com a foto do bebê, Leonardo, acompanhada da frase: “O Leonardo também tem direito ao CBD”. Na Marcha da Maconha de 2014, pela primeira vez, não houve confronto com a polícia.

Mais tarde, após a marcha, Clárian tomou as gotinhas do óleo de canábis rico em CBD pela primeira vez. Nos próximos 13 dias, a Clárian não teria crises. Para ter uma visão clara da eficácia do produto, Cida e Fábio montaram uma tabela, anotando o número de crises e qualquer outro efeito que notassem em Clárian. Em abril, Clárian teve doze crises; em maio, sete; em junho, três crises; em julho, Clárian teve uma crise, e os espasmos haviam diminuído em 90%. Pela primeira vez, Cida notou que Clárian estava suando: ela conseguia controlar melhor a temperatura corporal. Ela não mais ficava sentada o tempo todo, com o olhar vazio; ela estava mais esperta, brincava mais, até dançava e cantava, algo que nunca fazia. Na escola, Clárian começou a copiar palavras da lousa. O medicamento, de fato, funcionava. O único efeito colateral claro era a sonolência, devido ao efeito sedativo do CBD. Cida também notou que nas duas primeiras semanas Clárian ficou um pouco agressiva, mas esse efeito passou.

O problema, no entanto, além de receber autorização da Anvisa, era arcar com os custos de importação do óleo.

– A princípio, ele sai US$500 você trazendo ilegal. Cada seringuinha daquela é US$500. Minha filha tem 11 anos; pelo peso, altura, isso e aquilo, precisava de três seringuinhas daquela. Então, isso ia passar a US$1.500. Se eu transformar isso em reais, com toda a burocracia que me foi pedida pela Anvisa… tudo bem, consegui a receita, a prescrição. De tudo o que pediram eu fui atrás, mas isso aí ia se tornar R$8.700 – explica Fábio.

Não podendo arcar com os custos, mais uma vez, a família Carvalho não sabia o que fazer para dar continuidade ao tratamento de Clárian.

Em linhas tortas

A canábis é o que se costuma chamar de “mato”. Ela cresce rapidamente e em qualquer lugar, quase qualquer clima. O óleo também pode ser facilmente fabricado, em casa, sem muitas complicações. É claro que é necessária uma certa prática para se produzir um óleo de qualidade e manter os canabinoides preservados, mas é uma alternativa para quem não pode comprar o óleo pronto. Cida e Fábio passaram a defender a liberação do cultivo de canábis para fins medicinais.

No entanto, o discurso da mídia foi se moldando no decorrer de 2014, quando a palavra “maconha” passou a ser substituída por “CBD”. Os termos mais comuns eram “derivado da maconha”, “uma das mais de 400 substâncias presentes na maconha”, “extrato de CBD”, “óleo de CBD”. A mensagem foi se modificando e a impressão que se tinha era de que se podia extrair o CBD e descartar o resto, que somente o canabidiol possuía valor medicinal, sem o risco do nefasto THC. A ideia foi toda simplificada: o CBD é bom e a canábis continua sendo ruim, má. A mídia parecia ignorar o fato de que a maior parte das pesquisas científicas havia identificado valor terapêutico no THC, para diversas enfermidades. Além disso, o óleo que as mães brasileiras estavam usando para medicar os filhos continha uma variedade de outros canabinoides e terpenos, substâncias presentes em qualquer planta de canábis.

Jason explica que o CBD isolado não é eficaz para todos os casos. É preciso verificar caso a caso qual é o melhor equilíbrio entre os canabinoides. No caso de Jayden, a planta Charlotte`s Web – cepa nomeada em homenagem à garotinha Charlotte, que possui apenas 1% de THC – não funciona. Jayden usa variedades com uma concentração um pouco maior de THC. No entanto, para Charlotte, a sua planta funciona perfeitamente. Pais preocupados em causar “barato” nos filhos acabaram se posicionando contra, no entanto, a liberação de THC. Outros, preocupados com o risco de abuso, se posicionaram contra o cultivo, e preferem comprar um medicamento produzido pela indústria farmacêutica. Outros, como é o caso de Cida e Fábio, acreditam que o cultivo seja a melhor solução, já que muitas famílias não poderiam pagar por medicamentos industrializados.

A essa altura, os pais de Clárian já estavam em contato com centenas de famílias de pacientes que contavam com a liberação do CBD. Famílias do Brasil inteiro entravam em contato umas com as outras, formando uma rede. Em pouco tempo, havia chats, grupos de discussão no WhatsApp e grupos no Facebook em que pais e mães conversavam, sugerindo dosagens e formas de se obter o medicamento. Sem suporte da justiça ou da medicina, esses familiares eram seus próprios médicos, seus próprios advogados e comunicavam entre si as novidades. Salas de jantar se tornaram quartéis generais, onde pais aflitos se reuniam para discutir formas de ação.

Não demorou muito, no entanto, para que as divergências de opinião ameaçassem separar os grupos. Quando o médico e pesquisador da USP de Ribeirão Preto, José Alexandre de Souza Crippa, que faz parte de um grupo de especialistas que pesquisam canabinoides há décadas, começou a reunir voluntários para participar de testes clínicos que comprovassem a eficácia do CBD nos casos de epilepsia, uma exigência foi feita: os pais que quiserem ter seus filhos participando do projeto, não podem estar envolvidos em ativismo. Isso assustou Cida, que pensou muito sobre o assunto. Ela tinha fotos na Marcha da Maconha e estava envolvida com ativistas, que a ajudavam muito. Sentiu-se excluída ao ouvir, ainda, comentários de outras mães chamando ativistas de “maconheiros” e cultivadores de “jardineiros” com profundo desprezo, afirmando não querer qualquer envolvimento com eles. Diante de alegações de que ativistas a favor do uso recreativo estavam usando as crianças para alcançar a legalização da erva para fins recreativos, Cida recuou. Estava excluída da pesquisa.

Algumas mães tentaram convencê-la a apagar as fotos, cancelar sua página no Facebook, a “Síndrome de Dravet Brasil”, e a pensar na Clárian. Cida se viu forçada a escolher entre ter acesso ao medicamento de sua filha e desistir de seus princípios. Ela havia sido ajudada por ativistas que também usavam a erva medicinalmente, mas que precisavam do THC. Ela havia sido ajudada por advogados e até médicos a favor do uso recreativo, que não pediam nada em troca de seus serviços. Ela precisou rever valores morais até então simplificados em sua mente, mas que agora emergiam com tal complexidade que nada mais parecia fazer sentido.

Quando criança, Cida conviveu com um parente usuário de drogas. Cresceu com a certeza de que drogas eram ruins e, portanto, deveriam permanecer proibidas. No entanto, ela recorda com clareza que a mãe sabia identificar, quando o parente aparecia em casa, qual droga ele havia utilizado. Quando ele chegava agressivo, agitado e não comia, ela dizia:

– Hoje ele cheirou cocaína.

Quando ele chegava calmo e sentava com a família para jantar, a mãe comentava:

– Hoje ele fumou maconha.

Cida sabia a diferença entre as drogas, mas a canábis era agora a salvação para sua filha e, como pôde perceber, para milhares de outras pessoas. Ela resolveu participar de um grupo de pesquisa que não a discriminava, ou os outros pacientes, – e que não a forçava a determinar com clareza o complexo limite entre o que seria uso medicinal e o uso recreativo – e se encontrou com o Dr. Faveret, no Rio de Janeiro. O neurologista criou a APPEPI (Associação de Parentes de Pacientes com Epilepsia), onde reuniões com familiares de pacientes aconteciam para organizar um pedido de autorização de plantio da canábis para fins científicos. No entanto, o processo era longo e Cida precisava conseguir acesso ao medicamento de outra forma, antes que o óleo que havia contrabandeado acabasse.

Cida conseguiu então o contato de uma pessoa que mudaria por completo a sua situação: Dr. Eusébio.

**Essa história não acaba aqui, ela faz parte do livro “Ervas Daninhas”. Postarei mais em breve!**

A Mão de um Fantasma

No inverno de 2011, uma coisa não saía da cabeça de Jason: uma arma. Qualquer pistola serviria. Seria rápido e indolor. Uma bala no cérebro significaria o fim de todo o sofrimento; um alívio e uma paz que ele não sentia há anos. Os gritos de seu filho ecoavam distantes enquanto Jason contemplava essa ideia. Com as hospitalizações de Jayden se tornando frequentes, aquele pensamento – a silhueta de uma pistola contra a têmpora – se tornava cada vez mais tentador. No entanto, aqueles mesmos gritos que o levavam à loucura, o traziam de volta a si.

Precisava se concentrar. Não podia abandonar o filho. Em meio a uma das numerosas crises diárias de Jayden, de quem agora os gritos soavam nítidos e reais, Jason compreendeu que precisava de ajuda. Ligou para a mãe:

– É hoje, mãe, – ele tentava explicar, entre soluços, o que se passava – eu não consigo mais. Acabou, mãe. Acabou.

Sabendo exatamente do que se tratava, a avó de Jayden se viu implorando ao filho que fosse à igreja e se concentrasse em suas preces. Jason não havia largado a fé, continuara frequentando as mesmas igrejas, Shelter Cove e St. George, sempre que Jayden se encontrava estável. Em um domingo de missa, ele pediu por um sinal. Sabendo da situação em que Jason se encontrava, o pastor pediu para que todos orassem por Jason e Jayden, e intensificou suas preces pedindo a Deus que lhes mandasse um sinal:

– Não daqui a um mês, não daqui a uma semana. Jason precisa de um sinal hoje, Senhor, um sinal amanhã!

Jayden tinha apenas algumas semanas de vida.

 

O Dravet

Jayden nasceu com o gene SCN1A, imperceptível até sua primeira crise, aos quatro meses de idade. As primeiras convulsões eram do tipo grande mal, o que significa perda de coordenação motora e fortes contrações musculares, visíveis mesmo que aconteçam por debaixo da roupa. Aos dois anos de idade, ele passou a ter também convulsões clônicas, causando movimentos involuntários. Seis meses depois, Jayden tinha todos os tipos de convulsões existentes. As crises aconteciam diariamente e quase o dia todo. Os pais o levavam de um médico a outro, tentando descobrir o que ele tinha, sem sucesso.

Um teste genético finalmente concluiu o diagnóstico: Síndrome de Dravet, a forma mais severa de epilepsia conhecida. A síndrome costuma se manifestar em crianças antes de elas completarem um ano de idade. Não existe cura e os tratamentos podem ou não ajudar a diminuir as crises. Como a Síndrome de Dravet é uma doença rara – a cada 30 mil crianças, aproximadamente, uma nasce com o gene – não há muito investimento por parte da indústria farmacêutica em pesquisa, já que o retorno financeiro não compensaria os gastos. Os tratamentos disponíveis, portanto, funcionam na base da tentativa e erro.

Após o diagnóstico, que já é difícil de se obter (foram quase dois anos de testes e consultas no caso de Jayden), a busca pelo tratamento certo se torna uma corrida contra o tempo. A cada crise a criança se aproxima mais rapidamente da morte, já que as convulsões causam danos cerebrais irreparáveis. Jayden teve paradas cardíacas em algumas de suas crises e precisou ser ressuscitado no hospital. Fazer ressuscitação cardiopulmonar em Jayden enquanto espera pela ambulância não era bem a ideia de Jason para um programa pai e filho. A doença não só paralisa a vida da criança, ela devasta a família. Não é à toa que muitos pais não aguentam a pressão e acabam se divorciando. O que também foi o caso de Jason e sua mulher.

Aos quatro anos de idade, Jayden já tinha experimentado todos os tratamentos disponíveis no mercado. Jason já havia procurado tratamentos naturais, dietas, quiropratas, mas nada parecia funcionar. Jayden tomava 22 pílulas diárias, remédios que acabaram por debilitá-lo ainda mais. Uma das pílulas, o clobazam, remédio comumente usado para a síndrome de Dravet e outras formas de epilepsia, tem como possíveis efeitos colaterais: problemas na visão, tontura, perda de coordenação muscular, sonolência, nervosismo, pensamento anormal, agitação, ansiedade, mudanças de comportamento, confusão, convulsões (!), depressão, batimento cardíaco irregular, alucinações, falta de memória… e essa não é nem metade da lista.

Os remédios impediam Jayden de dormir, comer e o garoto chorava durante horas por medo das alucinações, entre outros efeitos desagradáveis. Aos quatro anos e meio de idade, Jayden não falava, não andava, não mastigava. Tudo o que ele fazia era chorar e gritar. As convulsões só haviam aumentado e ele tinha até 500 contrações musculares severas por dia. Jason saía correndo da loja de joias onde trabalhava como gerente quase todos os dias, pois seu filho se encontrava em uma ambulância.

Dois dias depois de ir à missa pedindo por um milagre, o primeiro sinal apareceu. Ele caminhava para o trabalho quando recebeu uma ligação da loja, dizendo que o chefe lhe concedera quatro meses de folga. Os outros funcionários haviam mandado uma carta ao dono da loja pedindo para que Jason pudesse ficar mais tempo com seu filho e se concentrar somente nisso. O pedido fora concedido.

O segundo sinal não demorou a aparecer. Um adolescente de 15 anos havia sido pego fumando um baseado na escola e estava suspenso. O noticiário local resolveu aproveitar o gancho para fazer uma matéria sobre drogas na escola. No entanto, na entrevista, uma revelação: o menino afirmava que fumava maconha para controlar suas convulsões. Os pais não sabiam dizer se ele estava dizendo a verdade.

Essa reportagem ficou martelando na cabeça de Jason e ele resolveu pesquisar mais a fundo. Acabou descobrindo que a maconha tem canabinoides anticonvulsivos e antiespasmódicos. Também acabou conhecendo o CBD (cannabidiol), componente da cannabis que é neuroprotetor e antioxidante, justamente o que poderia ajudar e proteger Jayden. Ficou surpreso, ainda, ao descobrir que o governo dos Estados Unidos aprovou a patente de número 6630507, sobre o uso de canabinoides como o CBD para efeito de neuroproteção e antioxidante. No entanto, o governo americano mantém a canábis na primeira categoria de drogas perigosas restritas, junto com a heroína e o LSD. As substâncias dessa categoria são consideradas extremamente perigosas, com alto potencial de abuso e nenhum valor medicinal aceito. Alguma coisa não estava fazendo sentido.

Ele tinha uma consulta médica em São Francisco e resolveu perguntar ao médico o que ele achava disso tudo. O conselho foi de tal flexibilidade que renovou as esperanças de Jason:

– É uma questão de vida ou morte agora, não custa tentar.

Convencer a família não seria tão fácil. Após obter o óleo de canábis em um conta-gotas de 3 gramas, Jason demorou duas semanas para tomar coragem. A mãe dizia:

– Você vai matar o seu filho! Dar maconha a uma criança no estado dele? Está louco?

De qualquer maneira, Jayden estava morrendo e Jason não tinha nada a perder. Quando finalmente colocou as três gotinhas debaixo da língua de Jayden, Jason passou, pela primeira vez, um dia inteiro com seu filho sem que ele tivesse uma crise. Passaram-se mais quatro dias sem nenhuma convulsão. Para Jason, era um milagre.

 

Uma revolução

O suposto milagre faz parte de nossa história há milhares de anos. O neurologista Ethan Russo, especialista em canabinoides, menciona em “Clinical Cannabis in Ancient Mesopotamia: A Historical Survey with Supporting Scientific Evidence” que os antigos mesopotâmios já usavam, desde o início da civilização, “um unguento tópico usado no tratamento de um mal antigo chamado Mão de Fantasma, que atualmente acredita-se que seja a epilepsia, incluindo a cannabis como um de seus principais ingredientes” (Russo apud Bennet, 2010, p.20).

Já no século XIX, o cirurgião da companhia das Índias, William B. O`Shaughnessy, recolheu informações sobre o uso medicinal da canábis pelos indianos e chineses. Segundo Chris Conrad, no livro “Hemp: O uso medicinal e nutricional da maconha” (1997), “O`Shaughnessy estabeleceu sua reputação ao aliviar a dor do reumatismo e aplacar sucessivamente as convulsões de uma criança com essa nova e estranha droga. Eventualmente ele popularizou seu uso na volta à Inglaterra. Seu êxito mais conhecido veio quando ele abrandou os dolorosos espasmos musculares do tétano e da raiva com a resina”.

Se todas essas informações, entre outros usos terapêuticos da canábis em seus mais de cinco mil anos de história conhecida já estavam por aí, por que Jason, em 2011, foi o primeiro a tentar esse tratamento com a Síndrome de Dravet? Jason se fez essa mesma pergunta centenas de vezes.

A princípio, quando iniciou o tratamento de Jayden, não poderia estar mais feliz com os resultados.

– Era o paraíso, sabe? Todos os dias em que Jayden está bem é como um paraíso.

Aos poucos, foi tirando Jayden dos medicamentos tradicionais, e os resultados foram ainda melhores:

– Eu tirei o stiripentol e ele parou de gritar; eu tirei o topomax, ele tomava 10 pílulas de topomax por dia, ele começou a mastigar e a correr. Ele não andava antes e ele começou a correr depois disso! Depois eu tirei o depakote e ele começou a compreender. Então eu tirei um pouco do clobazam, estamos nos últimos miligramas de clobazam, mas é muito difícil tirar dele. Ele sofreu muito com as crises de abstinência.

As crises de abstinência são comuns em remédios tarja-preta, pois eles causam dependência física. Jason foi removendo aos poucos, nos últimos anos, cada um dos medicamentos. Ele diz estar começando a conhecer Jayden pela primeira vez.

– Está me custando 22 pílulas para descobrir quem meu filho realmente é. Mal posso esperar para conhecê-lo de verdade.

Jason conseguira salvar a vida do filho e queria que outros pais soubessem sobre sua descoberta. No entanto, quando buscou mais informações e percebeu que a sua descoberta não era assim tão inédita, mas que poucos sabiam sobre ela, pensou em todas as famílias, todas as crianças que perderam suas vidas devagar, sofrendo, e ficou muito decepcionado.

Tentar passar a informação adiante também não foi nada fácil:

– Todos os pais que estão agora lutando em todos os estados eram contra mim no início – afirma ele, referindo-se aos pais que estão tentando conseguir acesso à canábis medicinal em estados americanos onde ela ainda é ilegal – Eu era expulso de todos os grupos de pacientes, todas as reuniões de Dravet, eles achavam que eu era um louco. Agora todos eles são grandes defensores da maconha medicinal.

Jason não recebeu pedidos de desculpas, mas ficou feliz com o resultado. Da pequena cidade de Modesto, na Califórnia, ele iniciara uma revolução que atingiria proporções mundiais. Desde que começou o tratamento de Jayden, diversas famílias têm feito o mesmo. Paige Figi, que salvou a vida da filha, Charlotte, com uma planta de canábis com alto teor de CBD, descobriu através de Jason o que fazer. A CNN tornou o caso de Charlotte famoso e o conhecimento sobre o uso pediátrico da canábis foi se espalhando pelo mundo até chegar aos ouvidos atentos de Maria Aparecida Felício de Carvalho.

 

**Essa história não termina aqui e faz parte do livro “Ervas Daninhas”. Postarei mais em breve!**

Para mais informações sobre a maconha medicinal, adquira o livro “O Uso Medicinal da Canábis“.

O perigo da fosfoetanolamina sintética

Nos próximos parágrafo eu explicarei o meu posicionamento em relação à tal da fosfoetanolamina sintética e o comportamento do criador da substância, o químico Gilberto Chierice, e os médicos envolvidos no caso. Para deixar bem claro, eu preciso explicar algumas coisas sobre estudos científicos, sobretudo em novas drogas. São informações que, na minha opinião, deveriam fazer parte do currículo escolar do ensino básico. Seria ótimo se, na primeira aula de ciências, as crianças recebessem a declaração do professor: “Vamos começar aprendendo como se faz ciência”; e a partir daí passasse as explicações a seguir – de maneira mais lúdica, claro. Os exemplos que usarei servem para ilustrar melhor as explicações e não são casos isolados; existem milhares de exemplos, mas não dá para enumerar todos eles. Vamos lá!

Caso não tenha acompanhado o desenvolvimento dessa história, aqui vai um link de uma das notícias para você se inteirar:

http://epoca.globo.com/vida/noticia/2015/10/fosfoetanolamina-sintetica-oferta-de-um-milagre-contra-o-cancer.html

Testando uma hipótese

Novas descobertas científicas costumam começar com uma hipótese (com exceção daquelas que ocorrem por acaso, como quando se procura uma coisa e encontra outra). Essa hipótese costuma ser baseada em uma teoria, uma observação do mundo real, casos anedóticos (vamos falar mais sobre eles), etc. Digamos então, que eu tenha desenvolvido a hipótese de que a fosfoetanolamina sintética cura o câncer. E eu cheguei a essa conclusão pela observação da fosfoetanolamina orgânica, gerada pelo próprio corpo humano, que atua na defesa do organismo contra o câncer. Então, se eu colocar mais dessa substância no meu corpo, haverá mais atuação contra o câncer; isso é lógico, faz muito sentido. No entanto, é uma teoria, e eu preciso testar essa teoria para provar que a minha hipótese está correta.

Antes de continuarmos eu preciso dar um exemplo de que nem sempre o que parece absolutamente lógico está correto. Nos anos 1980, médicos passaram a prescrever antiarrítmicos para pessoas que tinham ataques cardíacos. Fazia muito sentido, já que pessoas que acabaram de sofrer ataques cardíacos tendem a ter arritmia. Como pacientes com problemas cardíacos têm uma mortalidade muito alta, demorou muito tempo para que os médicos percebessem que isso, na verdade, aumentava as chances de o paciente falecer. Calcula-se que mais de 100 mil pessoas morreram por causa desse erro.

Comecemos, então,2015_10_14_Fosfoetanolamina_usp pelo laboratório. Então eu coloco essa substância junto com células do câncer em um pratinho e vejo como elas interagem. Se o resultado for positivo, vamos para a próxima fase. Eu estou resumindo essa parte, o ideal seria testar essa substância com diferentes células cancerosas, em dosagens diversas e ir anotando todos os resultados. Aí eu publico os resultados, outros cientistas vão ler meu estudo e dar seu parecer. Isso se chama peer review e é muito importante para um estudo. Muitas vezes o cientista cometeu um erro no design do estudo ou deixou de anotar um dado importante; não por incompetência, isso é comum. Realizar estudos científicos não é nada fácil. Outros cientistas podem também tentar realizar os mesmos estudos para ver se os meus resultados podem ser replicados. Dando tudo certo, a gente continua a pesquisa.

Agora podemos usar ratos de laboratório, com modelos animais de doenças humanas. Eu posso, por exemplo, injetar células de câncer humano em 30 ratos. Eu dou fosfoetanolamina sintética para 15 ratos e placebo para os outros 15, e vejo o que acontece. Nesse ponto, no estudo que os médicos realmente fizeram em ratos, foi utilizado um câncer de rato, e não um câncer humano. O estudo durou 28 dias e apresentou resultados positivos. Podemos testar em humanos agora? Não! Agora a gente faz um monte de outros testes em animais, utilizando modelos diferentes de câncer, diferentes animais, diferentes dosagens de fos e mais um monte de variantes, inclusive o tempo de tratamento.

Então, o que esse Dr. Menenguelo está dizendo no vídeo abaixo, como se estivesse tudo pronto para o uso da fos por humanos é balela.

https://www.youtube.com/watch?v=2QxcD0KNUUQ

Depois que todos esses testes forem efetuados em animais, e forem publicados, revisados (peer review), replicados e continuarem dando certo, aí a gente passa para os testes em humanos. E nós não chegamos aí ainda com a fosfoetanolamina sintética. Mas, digamos que tenhamos feito isso tudo e estamos animadíssimos para testar em humanos. A gente começa com grupos pequenos de pessoas, para ver se a droga é segura antes de testar em um grupo grande.

Lembrando que todas as fases do estudo precisam ser aprovadas por um comitê de ética, que é especialmente rígido antes de aprovar testes em seres humanos. Um exemplo ajuda a entender porque essa fase precisa ser extremamente cuidadosa.

“Em março de 2006, seis voluntários chegaram no hospital de Londres para participar de um estudo. (…) Dentro de uma hora, esses seis homens desenvolveram dores de cabeça, dores musculares e mal-estar. As coisas então pioraram: temperaturas altas, agitações, períodos em que se esqueciam quem eram. Logo estavam tremendo, pálidos, seus pulsos acelerados, a pressão sanguínea caindo. Então, um queda: um deles entrou em parada respiratória, os níveis de oxigênio no sangue caindo rapidamente e fluídos enchendo seus pulmões. Ninguém sabia porquê. Outro teve queda na pressão sanguínea para apenas 65/40, parou de respirar direito e foi levado rapidamente à unidade de tratamento intensivo, desacordado, entubado e mecanicamente ventilado. Dentro de um dia, todos os seis estavam desastrosamente mal: fluído nos pulmões, dificuldade para respirar, rins falhando, sangue coagulando sem controle pelo corpo todo, e as plaquetas desaparecendo do sangue. Os médicos deram tudo que podiam a eles: esteroides, anti-histamínicos, bloqueadores de receptores do sistema imunológico. Eles pararam de produzir urina e foram colocados em diálise; seu sangue foi substituído, primeiro devagar, depois rapidamente; eles precisavam de plasma, células vermelhas, plaquetas. A febre continuava. Um deles desenvolveu pneumonia. O sangue deixou de alcançar os membros periféricos. Seus dedos se tornaram pálidos, depois marrons, depois pretos, e começaram a apodrecer e morrer. Com esforço heroico, todos escaparam, pelo menos, com suas vidas.” *

Essa é a descrição de um teste clínico que deu muito errado, com uma droga experimental chamada TGN1412. Esse pode parecer um caso extremo, mas imagina se essa droga tivesse sido distribuída para a população indiscriminadamente como Chierice fez com a fosfoetanolamina. Ou mesmo se pulassem etapas do estudo e dessem a droga para um grande número de pessoas de uma vez, como pretendem fazer agora (destinaram nada menos que 10 milhões de reais para a realização de um estudo com até mil pacientes). É por isso que existem regulamentações desses estudos e fases específicas que precisam ser cuidadosamente seguidas.

Estudos em humanos

Os estudos clínicos em humanos costumam ocorrer da seguinte forma: digamos que eu reúna 200 pacientes (200 é uma boa representação estatística do infinito, com 95% de certeza e uma margem de erro de 7%), divido então esses pacientes em dois grupos, um que vai receber o medicamento, e um que vai receber o placebo. Nem os pacientes, nem os médicos aplicando o tratamento sabem quem está recebendo o medicamento e quem está recebendo o placebo, e ISSO É MUITO IMPORTANTE (vou explicar mais adiante). O medicamento vai se demonstrar eficaz se os pacientes no grupo do medicamento melhorarem mais do que os do grupo com placebo (também chamado de grupo de controle).

Essa comparação com o grupo de controle é importante porque, em muitos casos, pacientes melhoram sozinhos. Milagres acontecem e estão por toda parte na literatura médica, então precisamos controlar o estudo para ter certeza que é o medicamento funcionando. O efeito placebo também é importante nessa questão, pois já foi demonstrado em estudos clínicos que o placebo é mais eficaz que nada (explico mais a seguir). Por óbvias questões éticas, quando já existe um tratamento eficaz para a doença que queremos tratar com o medicamento novo, o placebo não é utilizado. No lugar dele, o grupo de controle recebe o melhor tratamento disponível no mercado. O medicamento novo que está sendo testado, portanto, precisa ser melhor ou igual ao medicamento já disponível, ou apresentar menos efeitos colaterais.

 

O placebo

Uma das polêmicas com a fosfoetanolamina é o fato de haverem pacientes dando relatos de melhora no câncer após usar o medicamento. Muitas pessoas, inclusive jornalistas, consideram esses casos a prova de que o medicamento funciona. Essa conclusão é irresponsável, pois CASOS ANEDÓTICOS NÃO PODEM SER CONSIDERADOS PROVA DE EFICÁCIO OU SEGURANÇA DE UM TRATAMENTO. O efeito placebo é um fenômeno interessante para explicar essa situação. Existem relatos de médicos de guerra que aplicaram soluções salinas com o rótulo da morfina (que havia acabado) antes de realizar cirurgias, e os pacientes resistiram à dor.

Caso você não esteja familiarizado com o amigo placebo, se trata de um remédio “de mentirinha”, que costuma vir na forma de uma pílula de açúcar ou uma injeção de soro. No entanto, existe todo o tipo de ritual, até cirurgia placebo, na qual o médico abre o paciente e finge que está fazendo alguma coisa (por incrível que pareça, funciona!). Porém, não é ético realizar estudos dividindo grupos de pacientes com placebo e um grupo sem tratamento, pois não é legal deixar pessoas doentes sem tratamento (apesar de que já foram feitos estudos tenebrosos em momentos menos regulados da história farmacêutica). Então como sabemos que o placebo funciona?

Estudos comparando um placebo com outro fizeram descobertas bem interessantes, como as que eu selecionei a seguir:

– Duas pílulas de açúcar são mais eficazes do que uma pílula de açúcar;

– Uma injeção salina é mais eficaz do que uma pílula de açúcar;

– A cor da pílula influencia a eficácia dela (pílulas roxas, por exemplo, são mais eficazes contra a ansiedade do que pílulas vermelhas);

– A linguagem corporal do médico oferecendo o tratamento influencia no resultado.

Esse último dado indica porque é importante que o médico não saiba, em um estudo clínico, se está dando o placebo ou o medicamento verdadeiro ao paciente. Em um estudo realizado por Gryll e Katahn (1978), foram oferecidas pílulas de açúcar para pacientes que receberiam uma injeção odontológica. Esses pacientes foram divididos em dois grupos. Um grupo receberia a pílula de um médico extremamente confiante, dizendo que se tratava de um remédio muito eficiente. O segundo grupo receberia a pílula de um médico menos sorridente, dizendo que era um medicamento novo e que ele não acreditava ser lá essas coisas. Adivinha qual grupo apresentou menos dor: o primeiro; e a diferença não foi pouca.

Estudos subsequentes indicaram que, ainda que não digam nada sobre o medicamento, os maneirismos, expressões faciais e o entusiasmo do médico podem afetar o resultado do estudo. Se detalhes como esses podem determinar a eficácia de um tratamento, o que dizer de Chierice, fornecendo pílulas a pacientes afirmando com certeza absoluta que é a cura do câncer, e até sugerindo que as pessoas larguem outros tipos de tratamento, como a quimioterapia. O vídeo a seguir é uma entrevista com Chierice, mostrando toda sua confiança no tratamento.

https://www.youtube.com/watch?v=0lcyyHiQlHk

É preciso muito cuidado, portanto, quando usamos casos específicos de pessoas que afirmam ter se curado com a fosfoetanolamina sintética. Nós não sabemos se elas foram curadas por qualquer outro tratamento, por placebo ou qualquer outra coisa que elas tenham feito, pois não houve um acompanhamento desses casos em um estudo clínico bem estruturado.

 

Anedotas

O meu objetivo não é desprezar os casos de pacientes que obtiveram melhora. Eu fico muito feliz por eles. De fato, os pacientes que fizeram uso da fosfoetanolamina sintética não estão errados. Para quem precisa curar uma doença mortal, tudo é válido. No entanto, isso não justifica o desvio de conduta dos médicos e cientistas envolvidos na distribuição ilegal de medicamentos não testados.

Os casos anedóticos costumam ser a primeira evidência de um possível tratamento. Eles podem ser observados para a elaboração de uma hipótese, por exemplo. Portanto, casos e histórias não são totalmente dispensáveis; de fato, eles são úteis. No entanto, conforme mencionado anteriormente, anedotas não servem como prova de que um tratamento funciona.

O estudo a seguir, por exemplo, analisa o índice de sobrevivência de mulheres com câncer de mama entre as que foram tratadas e as que recusaram tratamento. Depois de dez anos, 72% das mulheres tratadas sobreviveram, e 36% das mulheres não tratadas sobreviveram. Isso significa que fazer o tratamento dobra as chances de sobrevivência do paciente.

http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1357734/

O que aconteceria, no entanto, se em vez de realizar esse estudo, conversássemos apenas com as mulheres que sobreviveram sem tratamento? Teríamos a impressão de que o tratamento não faria diferença, de que os pacientes sobrevivem mesmo sem fazer nada. Esse seria um ponto de vista distorcido da realidade e, portanto, não podemos aceita-lo como verdadeiro e desencorajar pacientes a realizar tratamento contra o câncer. Isso seria irresponsável e perigoso.

O mesmo acontece quando conversamos com os pacientes que sobreviveram usando a fosfoetalonamina sintética, como se tem feito repetidamente na mídia convencional. Como não houve acompanhamento dos pacientes, não sabemos nada sobre aqueles que usaram o tratamento e não se curaram, ou até morreram. Não sabemos que efeitos colaterais poderiam ter sido observados ou quantos pacientes desistiram do tratamento com a fosfoetanolamina por ela não estar funcionando ou causar algum outro problema de saúde (detalhes que costumam ser observados em estudos clínicos e bem documentados).

Ainda assim, políticos estão ordenando a fabricação e distribuição do medicamento sem qualquer evidência científica de sua eficácia e segurança, se focando somente em casos específicos de pessoas que melhoraram.

 

A mídia e a prática da medicina

De repente, todo mundo virou médico. Não apenas o químico que sintetizou a fosfoetanolamina sintética, mas os jornalistas que estão acompanhando o caso, os políticos que liberam a distribuição da substância ou fornecem fundos para que os estudos aconteçam e, é claro, a população toda que acredita que exista prova da eficácia da tal da pílula. Aqueles que tentam colocar algum senso de lógica nessa história toda se tornaram fascistas, vendidos à indústria farmacêutica.

Eu me surpreendi ao descobrir que a indústria farmacêutica, apesar de frequentemente mencionada por aqueles que defendem a fosfoetanolamina, não tem nada a ver com a história. A indústria costuma estar por trás dessas ondas de sensacionalismo em cima de drogas não testadas. Um exemplo clássico é o caso da droga Herceptin, da Roche, com uma história muito parecida com a da fosfoetanolamina, que aconteceu em 2007.

O objetivo da Roche era conseguir licença de marketing para que a droga fosse prescrita nos estágios iniciais de câncer de mama. O que se seguiu foi um bizarro (mas não incomum) fenômeno midiático no Reino Unido. A droga “tem efeito muito modesto na sobrevivência em alguns casos de câncer de mama, com o custo de efeitos colaterais como problemas cardíacos sérios” *, afirma Bem Goldacre no livro “Bad Pharma”. O relato da médica Jane Keidan, que sofria de câncer de mama, ajuda a compreender quão distorcida era a imagem transmitida pela mídia sobre a droga:

“Eu comecei a sentir que, se eu não recebesse essa droga, eu teria poucas chances de sobreviver ao meu câncer. (…) Uma análise mais cuidadosa do ‘benefício de 50 por cento’ que estava sendo largamente citado na imprensa médica e não médica, e fixado na minha mente, na verdade se traduzia em 4-5 por cento de benefício para mim, o que se equilibrava ao risco cardíaco… Essa história ilustra como até mesmo uma mulher com treinamento médico e normalmente racional se torna vulnerável ao ser diagnosticada com uma doença potencialmente fatal”.

Cientistas reuniram todos os 361 artigos que mencionavam a Herceptin. A cada cinco artigos, quatro eram positivos, um neutro, nenhum negativo. Efeitos colaterais eram mencionados em menos de um a cada dez artigos. Alguns mencionavam o termo “droga milagrosa”, afirmando não haver qualquer efeito colateral.

Tudo isso ocorreu antes de qualquer evidência sobre a eficácia da droga ser fornecida ao ministério da saúde. Assim que a droga conquista as mentes e os corações da população e meche com a esperança de pacientes e familiares, há uma pressão muito grande para que ela seja aprovada.

Apesar de não haver, até onde sabemos, uma indústria por trás da fosfoetanolamina sintética, o fenômeno é o mesmo. Câncer é uma das doenças que mais aflige o ocidente; todo mundo conhece alguém que tem, teve ou morreu de câncer. É um assunto que dá audiência e comove a população e, portanto, se torna o assunto favorito das colunas de saúde… e todas as outras editorias. Parece haver um sentimento de heroísmo por parte dos jornalistas ao tocar no assunto e, portanto, não é necessária uma equipe de RP fornecendo dados distorcidos à mídia de massa.

De repente, todo mundo decide praticar medicina sem licença e sente que Chierice também merece esse direito, saindo não só ileso, mas louvado por seus crimes.

 

O perigo

O grande perigo agora, depois de tanto sensacionalismo em cima de uma substância em estágios iniciais de estudo, está na pressão que foi formada para que esses estudos sejam concluídos o mais rápido possível, com resultados positivos.

http://epoca.globo.com/vida/noticia/2015/11/eu-nao-gastaria-r-100-mil-nessa-pesquisa-da-fosfoetanolamina-diz-medico.html

Foram destinados dez milhões de reais para a pesquisa da fosfoetanolamina, apesar dos cortes de 1,8 bilhão de reais destinados à ciência e tecnologia no Brasil e de existirem diferentes pesquisas mais avançadas em andamento. Isso tira foco e verba de pesquisas mais promissoras.

Para que você tenha uma ideia (e eu adoro dar esse exemplo) existe mais evidência de que a maconha cure o câncer do que a fos. Na verdade, existe mais evidência de que a prática de yoga, meditação, mudança de dieta e até acupuntura ajudem no tratamento de câncer com mais eficiência que a fos. E isso não quer dizer que qualquer uma dessas coisas curem o câncer.

Então existe agora uma pressão política para que a fosfoetanolamina sintética apresente resultados positivos na pesquisa. Pesquisas financiadas pela indústria farmacêutica, por exemplo – onde há pressão financeira para que os resultados sejam favoráveis, – têm 3,6 vezes mais chances de apresentarem resultados positivos, em comparação com estudos independentes.

Essas distorções podem acontecer de diversas formas, seguem alguns exemplos (não vou entrar em detalhes no momento):

– interrompendo o estudo no momento em que a maior parte dos pacientes, por acaso, estiver tendo resultados positivos;

– selecionando pacientes com maior probabilidade de melhora;

– escrevendo um texto com conotação positiva para mascarar um resultado negativo (por exemplo: 2% dos pacientes no placebo melhoram, e 4% dos pacientes tomando o medicamento melhoram. É muito pouco, uma melhora quase insignificativa, mas eu posso escrever que houve o dobro de melhora, pois 4% é o dobro de 2%);

– ignorando efeitos colaterais (por incrível que pareça, isso acontece);

– entre outros truques que ocorrem diariamente na indústria dos estudos clínicos (mas isso merece um artigo a parte).

 

O fenômeno da fosfoetanolamina sintética não é algo novo, a história vive se repetindo. Eu espero que esse artigo ajude a compreender o problema e a identificar futuras situações similares. Eu espero mesmo é que a fos se prove uma droga eficiente na luta contra o câncer, com poucos efeitos colaterais (pelo bem dos pacientes voluntários nos estudos); e que nenhum desses estudos seja distorcido. Isso me faria muito feliz. No entanto, como essas ondas de sensacionalismo costumam ir e vir o tempo todo – e as pessoas se esquecem delas rapidamente – sem, no final, apresentarem um resultado muito animador, eu estou pouco otimista. O importante agora é sempre desconfiar de promessas boas demais, e procurar saber o máximo possível sobre o assunto antes de se juntar à multidão.

* Todas as referências diretas foram retiradas dos livros “Bad Science” e “Bad Pharma”, de Ben Goldacre. Para referênicas mais detalhadas, favor entrar em contato.

A corrida milionária pelo mercado do CBD

As recentes resoluções do CFM (Conselho Federal de Medicina), de apoiar o uso compassivo do CBD, e da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), de reclassificar o CBD como uma substância que possa ser prescrita por médicos indicam pouco avanço na luta pelo direto de usar a canábis medicinalmente. As mesmas decisões, entretanto, significam um grande sinal verde para empresas interessadas em explorar o mercado do canabidiol, e a indústria já tem se movimentado. Enquanto alguns pacientes declaram que os extratos industrializados de CBD fazem maravilhas, outros reclamam do preço abusivo e até duvidam da qualidade desses produtos. Será esse o caminho mais seguro a ser seguido? Será o favorecimento da indústria um mal necessário? Ou estaremos colocando pacientes em uma situação ainda mais complexa?

Se você está de alguma forma envolvido com o movimento pelo uso do CBD medicinal, já deve ter ouvido falar em empresas com os nomes: HempMeds, Dixie, Medical Marijuana Inc., KannaWay, KannaVest, KannaLife, etc. Essas empresas se especializaram em vender “hemp oil”, ou “óleo de cânhamo”, que segundo o rótulo é rico em CBD e contém uma quantidade insignificante de THC, inferior a 0,3%. Na verdade, todas essas empresas são dirigidas pelo mesmo grupo de pessoas, uma combinação interessante entre traficantes e pessoas sendo investigadas por diferentes tipos de fraude. Essas empresas fingem se associar e comprar ações umas das outras para que sejam valorizadas e consigam investidores. O mais interessante é que essas empresas funcionam de um sistema de pirâmide, que vende mais para seus colaboradores do que para o público externo, e funcionam à margem da legalidade nos Estados Unidos.

Uma pesquisa elaborada pela associação Project CBD, nos Estados Unidos, trouxe à tona sórdidas revelações sobre o funcionamento dessas empresas, que chegam ao Brasil através da HempMeds Brasil. Como a HempMeds não tem autorização para vender medicamentos, os óleos de cânhamo que produzem são vendidos como suplementos alimentares, mas a empresa faz uso de “buzz marketing” para fazer uma publicidade focada em pacientes que precisam do CBD, sobretudo crianças. Funciona da seguinte maneira: os representantes da HempMeds oferecem o caro RSHO (Real Scientific Hemp Oil) de graça para pais de crianças com epilepsia refratária, com a condição de que eles contem para outros pais os benefícios do produto, postem vídeos sobre o tratamento de seus filhos e passem a palavra adiante. Como 10 gramas do produto chegam a custar 599 dólares, sem contar as taxas e impostos da importação, muitos pais ficam felizes com o acordo, sobretudo se o remédio tem ajudado seus filhos. A empresa, portanto, consegue uma propaganda com relativamente nenhum custo para empresa, para vender um produto para fins que ela não tem autorização (ou controle de qualidade), usando pais e pacientes desesperados. A prescrição desses produtos importados foi apoiada pela CREMESP (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) e pela CFM.

Existe um problema fundamental na produção do óleo de cânhamo: o cânhamo não é a melhor fonte de CBD. Trata-se de uma variedade da canábis comumente utilizada na fabricação de fibra vegetal, para a produção de tecidos, combustível, óleo de motor, mobília, etc. O cânhamo possui uma concentração mais baixa de canabinoides e, portanto, é necessária uma grande quantidade de planta para produzir algumas gramas de óleo. O cânhamo também tem a propriedade de absorver toxinas e metais do solo e, portanto, se for utilizado para consumo, deve ser plantado em solo orgânico, sem adição de pesticidas. Não se sabe ao certo de onde vem o cânhamo utilizado nos produtos da HempMeds; há rumores de que seja importado da China ou da Romênia. Grandes plantações de cânhamo, especialmente voltada para a produção de fibra, não tomariam precauções como utilização de solo orgânico, fertilizantes naturais e a não utilização de pesticidas, por uma questão de praticidade e custo. Dessa forma, há uma preocupação sobre a qualidade e a segurança do RSHO. Há relatos de crianças e adultos que tiveram fortes cólicas abdominais após consumir o óleo, que teve algumas amostras analisadas como contendo quantidades altas de metais pesados e hexano, um solvente industrial tóxico.

Apesar do duvidoso funcionamento das empresas produtoras de óleo de cânhamo, que tem sido erroneamente chamado no Brasil de óleo de CBD, o governo americano concedeu à KannaLife, em 2012, uma patente de número 6630507, que lhes assegura direitos exclusivos sobre a produção de medicamentos à base de canabinoides. Trata-se de uma licença exclusiva para a empresa desenvolver drogas para o tratamento de encefalopatia hepática (danos cerebrais causados por doenças do fígado).

Diversos pesquisadores, sobretudo médicos como Paul Armentano e Sanjay Gupta, defendem que a melhor fonte de CBD são as variedades de canábis ricas em canabidiol, como a Charlotte`s Web, a Harletsu e a Avidekel. Primeiro porque os efeitos do CBD são potencializados pelo THC, ainda que em quantidades baixas – a Charlotte`s Web, por exemplo, possui menos de 1% de THC. Além disso, a presença de outros canabinoides e terpenos (substâncias vegetais) que também possuem valor terapêutico podem auxiliar no tratamento do paciente. Essas plantas também são fontes mais seguras de CBD, pois com a alta concentração do canabinoide, pouca planta é necessária para a produção do medicamento, permitindo um controle maior sobre o produto e diminuindo o risco por intoxicação por agentes externos.

Muitos pacientes precisam de uma quantidade maior de THC para responder ao tratamento com extratos de CBD. O americano Jason David afirma que seu filho, Jayden, que possui síndrome de Dravet, não melhorou ao utilizar plantas com baixa concentração de THC, mas conseguiu se livrar de mais de 90% das convulsões com plantas com uma porcentagem moderada de THC. Liberar somente o CBD, portanto, exclui essas crianças da possibilidade de melhora. Outro grupo de pacientes que acaba sendo excluído nessa decisão são os que precisam de alta concentração de THC, como pacientes com câncer e esclerose múltipla – e isso inclui crianças. A liberação do CBD apenas, portanto, beneficia de forma limitada um número limitado de pacientes.

A demanda é suficiente, no entanto, se o valor cobrado pelo medicamento for alto, para trazer lucros significativos à indústria. A GW Pharmaceuticals, empresa produtora do Sativex (spray de extrato de THC), está em contato com a Anvisa desde antes das decisões de reclassificação do CBD, segundo Maurício Cândido de Souza, porta-voz da empresa. No ano passado, enquanto a Anvisa postergava ao máximo a tomada de decisão em relação ao CBD, a GW realizava testes clínicos envolvendo um novo medicamento chamado Epidiolex, com altas concentrações de canabidiol purificado. Os testes em crianças com epilepsia refratária têm apresentado bons resultados, mas ainda faltam estudos para que o medicamento chegue ao mercado. Esse medicamento pode não vir, no entanto, com um preço acessível. A importação do Sativex, por exemplo, conforme apurado pelo site Smoke Buddies (smkbd.com), pode custar mais de 30 mil reais, como já acontece em outros países. O preço deve diminuir quando a empresa entrar no mercado brasileiro, mas continuará sendo alto para a realidade da maior parte das famílias brasileiras.

Segundo o médico e pesquisador José Alexandre de Souza Crippa, será papel dos pacientes exigir da justiça o barateamento desses produtos. Portador de patentes de CBD sintético, Crippa defende o uso do canabinoide sintetizado ou purificado. Ele deve anunciar em março seus planos para a produção de um CBD sintético no Brasil, em parceria com a indústria farmacêutica. A questão é: por que os pacientes deveriam aguardar as pesquisas, o lançamento de produtos que podem não funcionar tão bem quanto o produto natural, para depois brigar na justiça para que esses produtos sejam acessíveis a todos quando poderiam plantar variedades de canábis ricas em CBD virtualmente de graça?

Um estudo realizado em Israel, em 2014, por Ruth Gallily e colegas, comparou os efeitos terapêuticos do CBD isolado e a planta Avidekel, que é rica em CBD, mas também contém uma série de outros componentes naturais. A pesquisa constatou que a canábis em sua forma natural é mais eficiente do que o CBD em sua forma isolada no tratamento de doenças inflamatórias. Não faz sentido, portanto, conceder o direito de monopólio de medicamentos a base de canabidiol para empresas que pretendem vende-lo da forma mais lucrativa possível, se isso significa um medicamento menos eficiente do que sua própria matéria-prima.

A reclassificação do CBD, portanto, não é beneficial para a maior parte dos pacientes; favorece empresas que visam o lucro; abre margem para empresas que se aproveitam desse momento de transição e funcionam de maneira duvidosa, colocando em risco pacientes sem muita opção; permite que pacientes sejam “usados” para o interesse particular de alguns; mantém os preços de produtos à base de CBD lá no alto; e impedem famílias e pacientes de plantar a obra-prima de seus tratamentos, favorecendo o monopólio da indústria. O mais preocupante é impressão de que “o problema está resolvido”, amenizando o apelo de ativistas e da mídia em favor de pacientes. O problema está longe de ser resolvido, e a luta pelo acesso ao tratamento com canábis toma novo fôlego e continua.