O perigo da fosfoetanolamina sintética

Nos próximos parágrafo eu explicarei o meu posicionamento em relação à tal da fosfoetanolamina sintética e o comportamento do criador da substância, o químico Gilberto Chierice, e os médicos envolvidos no caso. Para deixar bem claro, eu preciso explicar algumas coisas sobre estudos científicos, sobretudo em novas drogas. São informações que, na minha opinião, deveriam fazer parte do currículo escolar do ensino básico. Seria ótimo se, na primeira aula de ciências, as crianças recebessem a declaração do professor: “Vamos começar aprendendo como se faz ciência”; e a partir daí passasse as explicações a seguir – de maneira mais lúdica, claro. Os exemplos que usarei servem para ilustrar melhor as explicações e não são casos isolados; existem milhares de exemplos, mas não dá para enumerar todos eles. Vamos lá!

Caso não tenha acompanhado o desenvolvimento dessa história, aqui vai um link de uma das notícias para você se inteirar:

http://epoca.globo.com/vida/noticia/2015/10/fosfoetanolamina-sintetica-oferta-de-um-milagre-contra-o-cancer.html

Testando uma hipótese

Novas descobertas científicas costumam começar com uma hipótese (com exceção daquelas que ocorrem por acaso, como quando se procura uma coisa e encontra outra). Essa hipótese costuma ser baseada em uma teoria, uma observação do mundo real, casos anedóticos (vamos falar mais sobre eles), etc. Digamos então, que eu tenha desenvolvido a hipótese de que a fosfoetanolamina sintética cura o câncer. E eu cheguei a essa conclusão pela observação da fosfoetanolamina orgânica, gerada pelo próprio corpo humano, que atua na defesa do organismo contra o câncer. Então, se eu colocar mais dessa substância no meu corpo, haverá mais atuação contra o câncer; isso é lógico, faz muito sentido. No entanto, é uma teoria, e eu preciso testar essa teoria para provar que a minha hipótese está correta.

Antes de continuarmos eu preciso dar um exemplo de que nem sempre o que parece absolutamente lógico está correto. Nos anos 1980, médicos passaram a prescrever antiarrítmicos para pessoas que tinham ataques cardíacos. Fazia muito sentido, já que pessoas que acabaram de sofrer ataques cardíacos tendem a ter arritmia. Como pacientes com problemas cardíacos têm uma mortalidade muito alta, demorou muito tempo para que os médicos percebessem que isso, na verdade, aumentava as chances de o paciente falecer. Calcula-se que mais de 100 mil pessoas morreram por causa desse erro.

Comecemos, então,2015_10_14_Fosfoetanolamina_usp pelo laboratório. Então eu coloco essa substância junto com células do câncer em um pratinho e vejo como elas interagem. Se o resultado for positivo, vamos para a próxima fase. Eu estou resumindo essa parte, o ideal seria testar essa substância com diferentes células cancerosas, em dosagens diversas e ir anotando todos os resultados. Aí eu publico os resultados, outros cientistas vão ler meu estudo e dar seu parecer. Isso se chama peer review e é muito importante para um estudo. Muitas vezes o cientista cometeu um erro no design do estudo ou deixou de anotar um dado importante; não por incompetência, isso é comum. Realizar estudos científicos não é nada fácil. Outros cientistas podem também tentar realizar os mesmos estudos para ver se os meus resultados podem ser replicados. Dando tudo certo, a gente continua a pesquisa.

Agora podemos usar ratos de laboratório, com modelos animais de doenças humanas. Eu posso, por exemplo, injetar células de câncer humano em 30 ratos. Eu dou fosfoetanolamina sintética para 15 ratos e placebo para os outros 15, e vejo o que acontece. Nesse ponto, no estudo que os médicos realmente fizeram em ratos, foi utilizado um câncer de rato, e não um câncer humano. O estudo durou 28 dias e apresentou resultados positivos. Podemos testar em humanos agora? Não! Agora a gente faz um monte de outros testes em animais, utilizando modelos diferentes de câncer, diferentes animais, diferentes dosagens de fos e mais um monte de variantes, inclusive o tempo de tratamento.

Então, o que esse Dr. Menenguelo está dizendo no vídeo abaixo, como se estivesse tudo pronto para o uso da fos por humanos é balela.

https://www.youtube.com/watch?v=2QxcD0KNUUQ

Depois que todos esses testes forem efetuados em animais, e forem publicados, revisados (peer review), replicados e continuarem dando certo, aí a gente passa para os testes em humanos. E nós não chegamos aí ainda com a fosfoetanolamina sintética. Mas, digamos que tenhamos feito isso tudo e estamos animadíssimos para testar em humanos. A gente começa com grupos pequenos de pessoas, para ver se a droga é segura antes de testar em um grupo grande.

Lembrando que todas as fases do estudo precisam ser aprovadas por um comitê de ética, que é especialmente rígido antes de aprovar testes em seres humanos. Um exemplo ajuda a entender porque essa fase precisa ser extremamente cuidadosa.

“Em março de 2006, seis voluntários chegaram no hospital de Londres para participar de um estudo. (…) Dentro de uma hora, esses seis homens desenvolveram dores de cabeça, dores musculares e mal-estar. As coisas então pioraram: temperaturas altas, agitações, períodos em que se esqueciam quem eram. Logo estavam tremendo, pálidos, seus pulsos acelerados, a pressão sanguínea caindo. Então, um queda: um deles entrou em parada respiratória, os níveis de oxigênio no sangue caindo rapidamente e fluídos enchendo seus pulmões. Ninguém sabia porquê. Outro teve queda na pressão sanguínea para apenas 65/40, parou de respirar direito e foi levado rapidamente à unidade de tratamento intensivo, desacordado, entubado e mecanicamente ventilado. Dentro de um dia, todos os seis estavam desastrosamente mal: fluído nos pulmões, dificuldade para respirar, rins falhando, sangue coagulando sem controle pelo corpo todo, e as plaquetas desaparecendo do sangue. Os médicos deram tudo que podiam a eles: esteroides, anti-histamínicos, bloqueadores de receptores do sistema imunológico. Eles pararam de produzir urina e foram colocados em diálise; seu sangue foi substituído, primeiro devagar, depois rapidamente; eles precisavam de plasma, células vermelhas, plaquetas. A febre continuava. Um deles desenvolveu pneumonia. O sangue deixou de alcançar os membros periféricos. Seus dedos se tornaram pálidos, depois marrons, depois pretos, e começaram a apodrecer e morrer. Com esforço heroico, todos escaparam, pelo menos, com suas vidas.” *

Essa é a descrição de um teste clínico que deu muito errado, com uma droga experimental chamada TGN1412. Esse pode parecer um caso extremo, mas imagina se essa droga tivesse sido distribuída para a população indiscriminadamente como Chierice fez com a fosfoetanolamina. Ou mesmo se pulassem etapas do estudo e dessem a droga para um grande número de pessoas de uma vez, como pretendem fazer agora (destinaram nada menos que 10 milhões de reais para a realização de um estudo com até mil pacientes). É por isso que existem regulamentações desses estudos e fases específicas que precisam ser cuidadosamente seguidas.

Estudos em humanos

Os estudos clínicos em humanos costumam ocorrer da seguinte forma: digamos que eu reúna 200 pacientes (200 é uma boa representação estatística do infinito, com 95% de certeza e uma margem de erro de 7%), divido então esses pacientes em dois grupos, um que vai receber o medicamento, e um que vai receber o placebo. Nem os pacientes, nem os médicos aplicando o tratamento sabem quem está recebendo o medicamento e quem está recebendo o placebo, e ISSO É MUITO IMPORTANTE (vou explicar mais adiante). O medicamento vai se demonstrar eficaz se os pacientes no grupo do medicamento melhorarem mais do que os do grupo com placebo (também chamado de grupo de controle).

Essa comparação com o grupo de controle é importante porque, em muitos casos, pacientes melhoram sozinhos. Milagres acontecem e estão por toda parte na literatura médica, então precisamos controlar o estudo para ter certeza que é o medicamento funcionando. O efeito placebo também é importante nessa questão, pois já foi demonstrado em estudos clínicos que o placebo é mais eficaz que nada (explico mais a seguir). Por óbvias questões éticas, quando já existe um tratamento eficaz para a doença que queremos tratar com o medicamento novo, o placebo não é utilizado. No lugar dele, o grupo de controle recebe o melhor tratamento disponível no mercado. O medicamento novo que está sendo testado, portanto, precisa ser melhor ou igual ao medicamento já disponível, ou apresentar menos efeitos colaterais.

 

O placebo

Uma das polêmicas com a fosfoetanolamina é o fato de haverem pacientes dando relatos de melhora no câncer após usar o medicamento. Muitas pessoas, inclusive jornalistas, consideram esses casos a prova de que o medicamento funciona. Essa conclusão é irresponsável, pois CASOS ANEDÓTICOS NÃO PODEM SER CONSIDERADOS PROVA DE EFICÁCIO OU SEGURANÇA DE UM TRATAMENTO. O efeito placebo é um fenômeno interessante para explicar essa situação. Existem relatos de médicos de guerra que aplicaram soluções salinas com o rótulo da morfina (que havia acabado) antes de realizar cirurgias, e os pacientes resistiram à dor.

Caso você não esteja familiarizado com o amigo placebo, se trata de um remédio “de mentirinha”, que costuma vir na forma de uma pílula de açúcar ou uma injeção de soro. No entanto, existe todo o tipo de ritual, até cirurgia placebo, na qual o médico abre o paciente e finge que está fazendo alguma coisa (por incrível que pareça, funciona!). Porém, não é ético realizar estudos dividindo grupos de pacientes com placebo e um grupo sem tratamento, pois não é legal deixar pessoas doentes sem tratamento (apesar de que já foram feitos estudos tenebrosos em momentos menos regulados da história farmacêutica). Então como sabemos que o placebo funciona?

Estudos comparando um placebo com outro fizeram descobertas bem interessantes, como as que eu selecionei a seguir:

– Duas pílulas de açúcar são mais eficazes do que uma pílula de açúcar;

– Uma injeção salina é mais eficaz do que uma pílula de açúcar;

– A cor da pílula influencia a eficácia dela (pílulas roxas, por exemplo, são mais eficazes contra a ansiedade do que pílulas vermelhas);

– A linguagem corporal do médico oferecendo o tratamento influencia no resultado.

Esse último dado indica porque é importante que o médico não saiba, em um estudo clínico, se está dando o placebo ou o medicamento verdadeiro ao paciente. Em um estudo realizado por Gryll e Katahn (1978), foram oferecidas pílulas de açúcar para pacientes que receberiam uma injeção odontológica. Esses pacientes foram divididos em dois grupos. Um grupo receberia a pílula de um médico extremamente confiante, dizendo que se tratava de um remédio muito eficiente. O segundo grupo receberia a pílula de um médico menos sorridente, dizendo que era um medicamento novo e que ele não acreditava ser lá essas coisas. Adivinha qual grupo apresentou menos dor: o primeiro; e a diferença não foi pouca.

Estudos subsequentes indicaram que, ainda que não digam nada sobre o medicamento, os maneirismos, expressões faciais e o entusiasmo do médico podem afetar o resultado do estudo. Se detalhes como esses podem determinar a eficácia de um tratamento, o que dizer de Chierice, fornecendo pílulas a pacientes afirmando com certeza absoluta que é a cura do câncer, e até sugerindo que as pessoas larguem outros tipos de tratamento, como a quimioterapia. O vídeo a seguir é uma entrevista com Chierice, mostrando toda sua confiança no tratamento.

https://www.youtube.com/watch?v=0lcyyHiQlHk

É preciso muito cuidado, portanto, quando usamos casos específicos de pessoas que afirmam ter se curado com a fosfoetanolamina sintética. Nós não sabemos se elas foram curadas por qualquer outro tratamento, por placebo ou qualquer outra coisa que elas tenham feito, pois não houve um acompanhamento desses casos em um estudo clínico bem estruturado.

 

Anedotas

O meu objetivo não é desprezar os casos de pacientes que obtiveram melhora. Eu fico muito feliz por eles. De fato, os pacientes que fizeram uso da fosfoetanolamina sintética não estão errados. Para quem precisa curar uma doença mortal, tudo é válido. No entanto, isso não justifica o desvio de conduta dos médicos e cientistas envolvidos na distribuição ilegal de medicamentos não testados.

Os casos anedóticos costumam ser a primeira evidência de um possível tratamento. Eles podem ser observados para a elaboração de uma hipótese, por exemplo. Portanto, casos e histórias não são totalmente dispensáveis; de fato, eles são úteis. No entanto, conforme mencionado anteriormente, anedotas não servem como prova de que um tratamento funciona.

O estudo a seguir, por exemplo, analisa o índice de sobrevivência de mulheres com câncer de mama entre as que foram tratadas e as que recusaram tratamento. Depois de dez anos, 72% das mulheres tratadas sobreviveram, e 36% das mulheres não tratadas sobreviveram. Isso significa que fazer o tratamento dobra as chances de sobrevivência do paciente.

http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1357734/

O que aconteceria, no entanto, se em vez de realizar esse estudo, conversássemos apenas com as mulheres que sobreviveram sem tratamento? Teríamos a impressão de que o tratamento não faria diferença, de que os pacientes sobrevivem mesmo sem fazer nada. Esse seria um ponto de vista distorcido da realidade e, portanto, não podemos aceita-lo como verdadeiro e desencorajar pacientes a realizar tratamento contra o câncer. Isso seria irresponsável e perigoso.

O mesmo acontece quando conversamos com os pacientes que sobreviveram usando a fosfoetalonamina sintética, como se tem feito repetidamente na mídia convencional. Como não houve acompanhamento dos pacientes, não sabemos nada sobre aqueles que usaram o tratamento e não se curaram, ou até morreram. Não sabemos que efeitos colaterais poderiam ter sido observados ou quantos pacientes desistiram do tratamento com a fosfoetanolamina por ela não estar funcionando ou causar algum outro problema de saúde (detalhes que costumam ser observados em estudos clínicos e bem documentados).

Ainda assim, políticos estão ordenando a fabricação e distribuição do medicamento sem qualquer evidência científica de sua eficácia e segurança, se focando somente em casos específicos de pessoas que melhoraram.

 

A mídia e a prática da medicina

De repente, todo mundo virou médico. Não apenas o químico que sintetizou a fosfoetanolamina sintética, mas os jornalistas que estão acompanhando o caso, os políticos que liberam a distribuição da substância ou fornecem fundos para que os estudos aconteçam e, é claro, a população toda que acredita que exista prova da eficácia da tal da pílula. Aqueles que tentam colocar algum senso de lógica nessa história toda se tornaram fascistas, vendidos à indústria farmacêutica.

Eu me surpreendi ao descobrir que a indústria farmacêutica, apesar de frequentemente mencionada por aqueles que defendem a fosfoetanolamina, não tem nada a ver com a história. A indústria costuma estar por trás dessas ondas de sensacionalismo em cima de drogas não testadas. Um exemplo clássico é o caso da droga Herceptin, da Roche, com uma história muito parecida com a da fosfoetanolamina, que aconteceu em 2007.

O objetivo da Roche era conseguir licença de marketing para que a droga fosse prescrita nos estágios iniciais de câncer de mama. O que se seguiu foi um bizarro (mas não incomum) fenômeno midiático no Reino Unido. A droga “tem efeito muito modesto na sobrevivência em alguns casos de câncer de mama, com o custo de efeitos colaterais como problemas cardíacos sérios” *, afirma Bem Goldacre no livro “Bad Pharma”. O relato da médica Jane Keidan, que sofria de câncer de mama, ajuda a compreender quão distorcida era a imagem transmitida pela mídia sobre a droga:

“Eu comecei a sentir que, se eu não recebesse essa droga, eu teria poucas chances de sobreviver ao meu câncer. (…) Uma análise mais cuidadosa do ‘benefício de 50 por cento’ que estava sendo largamente citado na imprensa médica e não médica, e fixado na minha mente, na verdade se traduzia em 4-5 por cento de benefício para mim, o que se equilibrava ao risco cardíaco… Essa história ilustra como até mesmo uma mulher com treinamento médico e normalmente racional se torna vulnerável ao ser diagnosticada com uma doença potencialmente fatal”.

Cientistas reuniram todos os 361 artigos que mencionavam a Herceptin. A cada cinco artigos, quatro eram positivos, um neutro, nenhum negativo. Efeitos colaterais eram mencionados em menos de um a cada dez artigos. Alguns mencionavam o termo “droga milagrosa”, afirmando não haver qualquer efeito colateral.

Tudo isso ocorreu antes de qualquer evidência sobre a eficácia da droga ser fornecida ao ministério da saúde. Assim que a droga conquista as mentes e os corações da população e meche com a esperança de pacientes e familiares, há uma pressão muito grande para que ela seja aprovada.

Apesar de não haver, até onde sabemos, uma indústria por trás da fosfoetanolamina sintética, o fenômeno é o mesmo. Câncer é uma das doenças que mais aflige o ocidente; todo mundo conhece alguém que tem, teve ou morreu de câncer. É um assunto que dá audiência e comove a população e, portanto, se torna o assunto favorito das colunas de saúde… e todas as outras editorias. Parece haver um sentimento de heroísmo por parte dos jornalistas ao tocar no assunto e, portanto, não é necessária uma equipe de RP fornecendo dados distorcidos à mídia de massa.

De repente, todo mundo decide praticar medicina sem licença e sente que Chierice também merece esse direito, saindo não só ileso, mas louvado por seus crimes.

 

O perigo

O grande perigo agora, depois de tanto sensacionalismo em cima de uma substância em estágios iniciais de estudo, está na pressão que foi formada para que esses estudos sejam concluídos o mais rápido possível, com resultados positivos.

http://epoca.globo.com/vida/noticia/2015/11/eu-nao-gastaria-r-100-mil-nessa-pesquisa-da-fosfoetanolamina-diz-medico.html

Foram destinados dez milhões de reais para a pesquisa da fosfoetanolamina, apesar dos cortes de 1,8 bilhão de reais destinados à ciência e tecnologia no Brasil e de existirem diferentes pesquisas mais avançadas em andamento. Isso tira foco e verba de pesquisas mais promissoras.

Para que você tenha uma ideia (e eu adoro dar esse exemplo) existe mais evidência de que a maconha cure o câncer do que a fos. Na verdade, existe mais evidência de que a prática de yoga, meditação, mudança de dieta e até acupuntura ajudem no tratamento de câncer com mais eficiência que a fos. E isso não quer dizer que qualquer uma dessas coisas curem o câncer.

Então existe agora uma pressão política para que a fosfoetanolamina sintética apresente resultados positivos na pesquisa. Pesquisas financiadas pela indústria farmacêutica, por exemplo – onde há pressão financeira para que os resultados sejam favoráveis, – têm 3,6 vezes mais chances de apresentarem resultados positivos, em comparação com estudos independentes.

Essas distorções podem acontecer de diversas formas, seguem alguns exemplos (não vou entrar em detalhes no momento):

– interrompendo o estudo no momento em que a maior parte dos pacientes, por acaso, estiver tendo resultados positivos;

– selecionando pacientes com maior probabilidade de melhora;

– escrevendo um texto com conotação positiva para mascarar um resultado negativo (por exemplo: 2% dos pacientes no placebo melhoram, e 4% dos pacientes tomando o medicamento melhoram. É muito pouco, uma melhora quase insignificativa, mas eu posso escrever que houve o dobro de melhora, pois 4% é o dobro de 2%);

– ignorando efeitos colaterais (por incrível que pareça, isso acontece);

– entre outros truques que ocorrem diariamente na indústria dos estudos clínicos (mas isso merece um artigo a parte).

 

O fenômeno da fosfoetanolamina sintética não é algo novo, a história vive se repetindo. Eu espero que esse artigo ajude a compreender o problema e a identificar futuras situações similares. Eu espero mesmo é que a fos se prove uma droga eficiente na luta contra o câncer, com poucos efeitos colaterais (pelo bem dos pacientes voluntários nos estudos); e que nenhum desses estudos seja distorcido. Isso me faria muito feliz. No entanto, como essas ondas de sensacionalismo costumam ir e vir o tempo todo – e as pessoas se esquecem delas rapidamente – sem, no final, apresentarem um resultado muito animador, eu estou pouco otimista. O importante agora é sempre desconfiar de promessas boas demais, e procurar saber o máximo possível sobre o assunto antes de se juntar à multidão.

* Todas as referências diretas foram retiradas dos livros “Bad Science” e “Bad Pharma”, de Ben Goldacre. Para referênicas mais detalhadas, favor entrar em contato.

A corrida milionária pelo mercado do CBD

As recentes resoluções do CFM (Conselho Federal de Medicina), de apoiar o uso compassivo do CBD, e da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), de reclassificar o CBD como uma substância que possa ser prescrita por médicos indicam pouco avanço na luta pelo direto de usar a canábis medicinalmente. As mesmas decisões, entretanto, significam um grande sinal verde para empresas interessadas em explorar o mercado do canabidiol, e a indústria já tem se movimentado. Enquanto alguns pacientes declaram que os extratos industrializados de CBD fazem maravilhas, outros reclamam do preço abusivo e até duvidam da qualidade desses produtos. Será esse o caminho mais seguro a ser seguido? Será o favorecimento da indústria um mal necessário? Ou estaremos colocando pacientes em uma situação ainda mais complexa?

Se você está de alguma forma envolvido com o movimento pelo uso do CBD medicinal, já deve ter ouvido falar em empresas com os nomes: HempMeds, Dixie, Medical Marijuana Inc., KannaWay, KannaVest, KannaLife, etc. Essas empresas se especializaram em vender “hemp oil”, ou “óleo de cânhamo”, que segundo o rótulo é rico em CBD e contém uma quantidade insignificante de THC, inferior a 0,3%. Na verdade, todas essas empresas são dirigidas pelo mesmo grupo de pessoas, uma combinação interessante entre traficantes e pessoas sendo investigadas por diferentes tipos de fraude. Essas empresas fingem se associar e comprar ações umas das outras para que sejam valorizadas e consigam investidores. O mais interessante é que essas empresas funcionam de um sistema de pirâmide, que vende mais para seus colaboradores do que para o público externo, e funcionam à margem da legalidade nos Estados Unidos.

Uma pesquisa elaborada pela associação Project CBD, nos Estados Unidos, trouxe à tona sórdidas revelações sobre o funcionamento dessas empresas, que chegam ao Brasil através da HempMeds Brasil. Como a HempMeds não tem autorização para vender medicamentos, os óleos de cânhamo que produzem são vendidos como suplementos alimentares, mas a empresa faz uso de “buzz marketing” para fazer uma publicidade focada em pacientes que precisam do CBD, sobretudo crianças. Funciona da seguinte maneira: os representantes da HempMeds oferecem o caro RSHO (Real Scientific Hemp Oil) de graça para pais de crianças com epilepsia refratária, com a condição de que eles contem para outros pais os benefícios do produto, postem vídeos sobre o tratamento de seus filhos e passem a palavra adiante. Como 10 gramas do produto chegam a custar 599 dólares, sem contar as taxas e impostos da importação, muitos pais ficam felizes com o acordo, sobretudo se o remédio tem ajudado seus filhos. A empresa, portanto, consegue uma propaganda com relativamente nenhum custo para empresa, para vender um produto para fins que ela não tem autorização (ou controle de qualidade), usando pais e pacientes desesperados. A prescrição desses produtos importados foi apoiada pela CREMESP (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) e pela CFM.

Existe um problema fundamental na produção do óleo de cânhamo: o cânhamo não é a melhor fonte de CBD. Trata-se de uma variedade da canábis comumente utilizada na fabricação de fibra vegetal, para a produção de tecidos, combustível, óleo de motor, mobília, etc. O cânhamo possui uma concentração mais baixa de canabinoides e, portanto, é necessária uma grande quantidade de planta para produzir algumas gramas de óleo. O cânhamo também tem a propriedade de absorver toxinas e metais do solo e, portanto, se for utilizado para consumo, deve ser plantado em solo orgânico, sem adição de pesticidas. Não se sabe ao certo de onde vem o cânhamo utilizado nos produtos da HempMeds; há rumores de que seja importado da China ou da Romênia. Grandes plantações de cânhamo, especialmente voltada para a produção de fibra, não tomariam precauções como utilização de solo orgânico, fertilizantes naturais e a não utilização de pesticidas, por uma questão de praticidade e custo. Dessa forma, há uma preocupação sobre a qualidade e a segurança do RSHO. Há relatos de crianças e adultos que tiveram fortes cólicas abdominais após consumir o óleo, que teve algumas amostras analisadas como contendo quantidades altas de metais pesados e hexano, um solvente industrial tóxico.

Apesar do duvidoso funcionamento das empresas produtoras de óleo de cânhamo, que tem sido erroneamente chamado no Brasil de óleo de CBD, o governo americano concedeu à KannaLife, em 2012, uma patente de número 6630507, que lhes assegura direitos exclusivos sobre a produção de medicamentos à base de canabinoides. Trata-se de uma licença exclusiva para a empresa desenvolver drogas para o tratamento de encefalopatia hepática (danos cerebrais causados por doenças do fígado).

Diversos pesquisadores, sobretudo médicos como Paul Armentano e Sanjay Gupta, defendem que a melhor fonte de CBD são as variedades de canábis ricas em canabidiol, como a Charlotte`s Web, a Harletsu e a Avidekel. Primeiro porque os efeitos do CBD são potencializados pelo THC, ainda que em quantidades baixas – a Charlotte`s Web, por exemplo, possui menos de 1% de THC. Além disso, a presença de outros canabinoides e terpenos (substâncias vegetais) que também possuem valor terapêutico podem auxiliar no tratamento do paciente. Essas plantas também são fontes mais seguras de CBD, pois com a alta concentração do canabinoide, pouca planta é necessária para a produção do medicamento, permitindo um controle maior sobre o produto e diminuindo o risco por intoxicação por agentes externos.

Muitos pacientes precisam de uma quantidade maior de THC para responder ao tratamento com extratos de CBD. O americano Jason David afirma que seu filho, Jayden, que possui síndrome de Dravet, não melhorou ao utilizar plantas com baixa concentração de THC, mas conseguiu se livrar de mais de 90% das convulsões com plantas com uma porcentagem moderada de THC. Liberar somente o CBD, portanto, exclui essas crianças da possibilidade de melhora. Outro grupo de pacientes que acaba sendo excluído nessa decisão são os que precisam de alta concentração de THC, como pacientes com câncer e esclerose múltipla – e isso inclui crianças. A liberação do CBD apenas, portanto, beneficia de forma limitada um número limitado de pacientes.

A demanda é suficiente, no entanto, se o valor cobrado pelo medicamento for alto, para trazer lucros significativos à indústria. A GW Pharmaceuticals, empresa produtora do Sativex (spray de extrato de THC), está em contato com a Anvisa desde antes das decisões de reclassificação do CBD, segundo Maurício Cândido de Souza, porta-voz da empresa. No ano passado, enquanto a Anvisa postergava ao máximo a tomada de decisão em relação ao CBD, a GW realizava testes clínicos envolvendo um novo medicamento chamado Epidiolex, com altas concentrações de canabidiol purificado. Os testes em crianças com epilepsia refratária têm apresentado bons resultados, mas ainda faltam estudos para que o medicamento chegue ao mercado. Esse medicamento pode não vir, no entanto, com um preço acessível. A importação do Sativex, por exemplo, conforme apurado pelo site Smoke Buddies (smkbd.com), pode custar mais de 30 mil reais, como já acontece em outros países. O preço deve diminuir quando a empresa entrar no mercado brasileiro, mas continuará sendo alto para a realidade da maior parte das famílias brasileiras.

Segundo o médico e pesquisador José Alexandre de Souza Crippa, será papel dos pacientes exigir da justiça o barateamento desses produtos. Portador de patentes de CBD sintético, Crippa defende o uso do canabinoide sintetizado ou purificado. Ele deve anunciar em março seus planos para a produção de um CBD sintético no Brasil, em parceria com a indústria farmacêutica. A questão é: por que os pacientes deveriam aguardar as pesquisas, o lançamento de produtos que podem não funcionar tão bem quanto o produto natural, para depois brigar na justiça para que esses produtos sejam acessíveis a todos quando poderiam plantar variedades de canábis ricas em CBD virtualmente de graça?

Um estudo realizado em Israel, em 2014, por Ruth Gallily e colegas, comparou os efeitos terapêuticos do CBD isolado e a planta Avidekel, que é rica em CBD, mas também contém uma série de outros componentes naturais. A pesquisa constatou que a canábis em sua forma natural é mais eficiente do que o CBD em sua forma isolada no tratamento de doenças inflamatórias. Não faz sentido, portanto, conceder o direito de monopólio de medicamentos a base de canabidiol para empresas que pretendem vende-lo da forma mais lucrativa possível, se isso significa um medicamento menos eficiente do que sua própria matéria-prima.

A reclassificação do CBD, portanto, não é beneficial para a maior parte dos pacientes; favorece empresas que visam o lucro; abre margem para empresas que se aproveitam desse momento de transição e funcionam de maneira duvidosa, colocando em risco pacientes sem muita opção; permite que pacientes sejam “usados” para o interesse particular de alguns; mantém os preços de produtos à base de CBD lá no alto; e impedem famílias e pacientes de plantar a obra-prima de seus tratamentos, favorecendo o monopólio da indústria. O mais preocupante é impressão de que “o problema está resolvido”, amenizando o apelo de ativistas e da mídia em favor de pacientes. O problema está longe de ser resolvido, e a luta pelo acesso ao tratamento com canábis toma novo fôlego e continua.

Maior processo da história da canábis medicinal em cheque

A Medical Marijuana Inc., empresa da qual a Hemp Meds é subsidiária, abriu processo na justiça em busca de uma indenização de 100 milhões da instituição sem fins lucrativos Project CBD. Segundo a documentação do processo, o relatório “Hemp Oil Hustlers”, resultado de uma pesquisa da Project CBD sobre a Medical Marijuana Inc. e empresas relacionadas, deixou propositalmente de citar o resultado final de um teste laboratorial feito com uma amostra de RSHO, principal produto da empresa, a fim de prejudicá-la.

A alegação, no entanto, não é verdadeira. O relatório menciona tanto o resultado que a Medical Marijuana Inc. chama de preliminar, indicando presença de metais pesados no RSHO, quanto o resultado final, indicando os níveis de metais pesados dentro dos padrões aceitáveis. A seguir, o trecho do relatório “Hemp Oil Hustlers” no original em inglês e a tradução para o português (a questão é tratada entre as páginas 17 e 19 do relatório):

“The initial results appeared to confirm [that] the RSHO contained high levels of several heavy metals, including nickel, selenium, molybdenum, arsenic, and silver. A few days later, Stewart Environmental Consultants issued a second report that contradicted its earlier findings: Five numbers, all pertaining to heavy metal toxins, were changed from unsafe to safe levels.”

Os resultados iniciais pareciam confirmar que o RSHO continha altos níveis de diversos metais pesados, incluindo níquel, selênio, molibdênio, arsênico e prata. Alguns dias depois, Stewart Environmental Consultants (laboratório onde o teste foi realizado) publicou um segundo relatório contradizendo os resultados anteriores: cinco números, todos relacionados a metais pesados tóxicos, foram alterados de níveis não seguros para níveis seguros.

O relatório “Hemp Oil Hustlers” questiona as motivações que levaram o laboratório a duvidar do primeiro resultado e a usar o mesmo cientista para fazer a segunda análise, já que é protocolo que outro cientista realize o segundo teste quando o primeiro é considerado insatisfatório. Eles também questionam o motivo pelo qual somente os resultados negativos divergiram no segundo teste.

O processo encaminhado pela Medical Marijuana Inc. não menciona outro teste laboratorial realizado pela Project CBD e citado em seu relatório sobre a empresa, que acusava a presença de solventes químicos tóxicos. A Medical Marijuana Inc. também não refutou nenhuma das outras alegações presentes no relatório, como as práticas administrativas duvidosas da empresa e os processos de fraude nas quais seu corpo administrativo está envolvido.

Por que estaria uma empresa multimilionária processando uma instituição sem fins lucrativos por 100 milhões de dólares com uma acusação sem base? A Project CBD acredita que a Medical Marijuana Inc. esteja tentando convencer seus clientes e investidores de que as acusações feitas são falsas, legitimando-se com processos como esse. A Medical Marijuana Inc. afirma que foi prejudicada pela Project CBD e acusa Martin Lee, responsável pelo dossiê da empresa, de maliciosamente conspirar contra ela, com intenção de interferir com uma prospectiva vantagem nos negócios.

A Project CBD abriu recurso na justiça para que o processo não seja julgado. Se o processo seguir em frente, será a primeira grande batalha legal no mercado da maconha medicinal.

Leia “Hemp Oil Hustlers” na íntegra: http://www.projectcbd.org/news/hemp-oil-hustlers-a-project-cbd-special-report-on-medical-marijuana-inc-hempmeds-and-kannaway/

Leia o processo aberto pela Medical Marijuana Inc.: http://www.projectcbd.org/wp-content/uploads/2015/04/37-2014-00036039-CU-DF-CTL_ROA-8_01-16-15_Amended_Complaint_1430360415996.pdf

Leia o recurso solicitado pela Project CBD: http://www.projectcbd.org/wp-content/uploads/2015/04/98806258_v-1_2015-04-28-Defendants_-Anti-SLAPP-Motion-to-Strike.pdf