Coloquei a cabeça pra fora da janela assim que ouvi os tiros, o máximo que as redes de segurança permitiam. Meu marido veio em seguida.
– Tá vendo a polícia? – perguntei.
– Sim, vamos lá ver, pega o celular.
Descemos correndo e logo nos deparamos com o corpo de um bandido, morto a tiros pela polícia após uma perseguição. Mais a frente encontramos uma BMW que havia batido em um poste, e outro criminoso deitado no chão, com um tiro na perna, mas vivo. Aparentemente, um terceiro fugiu.
Me lembrei da música de João Bosco, “De Frente Pro Crime”. Em versos, o cantor descreve um cadáver na rua, que atrai aquela rodinha de curiosos e, em seguida, está todo mundo no bar. Camelôs aproveitam a multidão para vender suas mercadorias, outros oportunistas fazem discursos políticos. Eventualmente todos vão embora e esquecem do ocorrido. E fica lá o corpo estendido no chão.
Os tiros mal sessaram e a cena do crime já estava repleta de expectadores, saindo dos prédios e casas da vizinhança. Mais carros da polícia se aproximavam, aos poucos cercaram o local com seus veículos e as faixas preto-amarelas. O fato de eu não ter sentido nada – nenhum calafrio, nojo, horror ou pena – me perturbou um pouco. Esse tipo de situação se tornou tão comum que o que atrai as pessoas é mais a curiosidade mesmo. Até mesmo crianças corriam soltas do outro lado da rua, sem medo do cadáver, apontando dedos e fazendo sons de “Pah! Pah!”.
Comecei a ouvir os comentários dos meus vizinhos, e foi isso que acabou me chocando. Ouvi de duas mulheres proferirem as seguintes palavras:
– Um bandido a menos pra eu me preocupar!
– Bandido bom é bandido morto, ótimo trabalho da polícia.
O mesmo discurso se repetiu uma, duas, três vezes, e continuou se repetindo até que os sons dos helicópteros do Brasil Urgente, Globo News e mais alguns noticiários desaparecessem. Mas eu não parava de me perguntar: quando foi que o policial virou carrasco? Quando foi que um bandido comum passou a merecer a pena de morte?
Vai ver fui eu que perdi a coisa toda. Nós nunca saímos da era medieval. Nem na época em que João Bosco abriu a janela, nem agora. É tudo preto no branco, se é criminoso, merece morrer. Ninguém vai pensar na coisa como um todo, ninguém vai lembrar que já cometeu erros, ninguém vai querer saber se o cadáver tinha família, quais eram suas motivações, se teve escolha. Cada um colhe o que plantou.
E o que eu plantei? A indiferença. Me senti melhor ao saber que não plantei tanto ódio quanto os meus vizinhos, mas isso não faz da minha situação nem um tantinho melhor que a deles. Estamos todos presos nesse ciclo vicioso, não há causa para o problema e não há solução. Participamos ativa e passivamente de um sistema torto onde aprovamos assassinatos punitivos, deixamos a corrupção e a brutalidade acontecer, aceitamos a vida como ela é e seguimos em frente. Refletir sobre uma situação banal como essa dá muito mais trabalho e dói.
Sem pressa foi cada um para o seu lado, pensando em uma mulher ou em um time. Olhei o corpo e fechei minha janela de frente pro crime.