As recentes resoluções do CFM (Conselho Federal de Medicina), de apoiar o uso compassivo do CBD, e da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), de reclassificar o CBD como uma substância que possa ser prescrita por médicos indicam pouco avanço na luta pelo direto de usar a canábis medicinalmente. As mesmas decisões, entretanto, significam um grande sinal verde para empresas interessadas em explorar o mercado do canabidiol, e a indústria já tem se movimentado. Enquanto alguns pacientes declaram que os extratos industrializados de CBD fazem maravilhas, outros reclamam do preço abusivo e até duvidam da qualidade desses produtos. Será esse o caminho mais seguro a ser seguido? Será o favorecimento da indústria um mal necessário? Ou estaremos colocando pacientes em uma situação ainda mais complexa?
Se você está de alguma forma envolvido com o movimento pelo uso do CBD medicinal, já deve ter ouvido falar em empresas com os nomes: HempMeds, Dixie, Medical Marijuana Inc., KannaWay, KannaVest, KannaLife, etc. Essas empresas se especializaram em vender “hemp oil”, ou “óleo de cânhamo”, que segundo o rótulo é rico em CBD e contém uma quantidade insignificante de THC, inferior a 0,3%. Na verdade, todas essas empresas são dirigidas pelo mesmo grupo de pessoas, uma combinação interessante entre traficantes e pessoas sendo investigadas por diferentes tipos de fraude. Essas empresas fingem se associar e comprar ações umas das outras para que sejam valorizadas e consigam investidores. O mais interessante é que essas empresas funcionam de um sistema de pirâmide, que vende mais para seus colaboradores do que para o público externo, e funcionam à margem da legalidade nos Estados Unidos.
Uma pesquisa elaborada pela associação Project CBD, nos Estados Unidos, trouxe à tona sórdidas revelações sobre o funcionamento dessas empresas, que chegam ao Brasil através da HempMeds Brasil. Como a HempMeds não tem autorização para vender medicamentos, os óleos de cânhamo que produzem são vendidos como suplementos alimentares, mas a empresa faz uso de “buzz marketing” para fazer uma publicidade focada em pacientes que precisam do CBD, sobretudo crianças. Funciona da seguinte maneira: os representantes da HempMeds oferecem o caro RSHO (Real Scientific Hemp Oil) de graça para pais de crianças com epilepsia refratária, com a condição de que eles contem para outros pais os benefícios do produto, postem vídeos sobre o tratamento de seus filhos e passem a palavra adiante. Como 10 gramas do produto chegam a custar 599 dólares, sem contar as taxas e impostos da importação, muitos pais ficam felizes com o acordo, sobretudo se o remédio tem ajudado seus filhos. A empresa, portanto, consegue uma propaganda com relativamente nenhum custo para empresa, para vender um produto para fins que ela não tem autorização (ou controle de qualidade), usando pais e pacientes desesperados. A prescrição desses produtos importados foi apoiada pela CREMESP (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) e pela CFM.
Existe um problema fundamental na produção do óleo de cânhamo: o cânhamo não é a melhor fonte de CBD. Trata-se de uma variedade da canábis comumente utilizada na fabricação de fibra vegetal, para a produção de tecidos, combustível, óleo de motor, mobília, etc. O cânhamo possui uma concentração mais baixa de canabinoides e, portanto, é necessária uma grande quantidade de planta para produzir algumas gramas de óleo. O cânhamo também tem a propriedade de absorver toxinas e metais do solo e, portanto, se for utilizado para consumo, deve ser plantado em solo orgânico, sem adição de pesticidas. Não se sabe ao certo de onde vem o cânhamo utilizado nos produtos da HempMeds; há rumores de que seja importado da China ou da Romênia. Grandes plantações de cânhamo, especialmente voltada para a produção de fibra, não tomariam precauções como utilização de solo orgânico, fertilizantes naturais e a não utilização de pesticidas, por uma questão de praticidade e custo. Dessa forma, há uma preocupação sobre a qualidade e a segurança do RSHO. Há relatos de crianças e adultos que tiveram fortes cólicas abdominais após consumir o óleo, que teve algumas amostras analisadas como contendo quantidades altas de metais pesados e hexano, um solvente industrial tóxico.
Apesar do duvidoso funcionamento das empresas produtoras de óleo de cânhamo, que tem sido erroneamente chamado no Brasil de óleo de CBD, o governo americano concedeu à KannaLife, em 2012, uma patente de número 6630507, que lhes assegura direitos exclusivos sobre a produção de medicamentos à base de canabinoides. Trata-se de uma licença exclusiva para a empresa desenvolver drogas para o tratamento de encefalopatia hepática (danos cerebrais causados por doenças do fígado).
Diversos pesquisadores, sobretudo médicos como Paul Armentano e Sanjay Gupta, defendem que a melhor fonte de CBD são as variedades de canábis ricas em canabidiol, como a Charlotte`s Web, a Harletsu e a Avidekel. Primeiro porque os efeitos do CBD são potencializados pelo THC, ainda que em quantidades baixas – a Charlotte`s Web, por exemplo, possui menos de 1% de THC. Além disso, a presença de outros canabinoides e terpenos (substâncias vegetais) que também possuem valor terapêutico podem auxiliar no tratamento do paciente. Essas plantas também são fontes mais seguras de CBD, pois com a alta concentração do canabinoide, pouca planta é necessária para a produção do medicamento, permitindo um controle maior sobre o produto e diminuindo o risco por intoxicação por agentes externos.
Muitos pacientes precisam de uma quantidade maior de THC para responder ao tratamento com extratos de CBD. O americano Jason David afirma que seu filho, Jayden, que possui síndrome de Dravet, não melhorou ao utilizar plantas com baixa concentração de THC, mas conseguiu se livrar de mais de 90% das convulsões com plantas com uma porcentagem moderada de THC. Liberar somente o CBD, portanto, exclui essas crianças da possibilidade de melhora. Outro grupo de pacientes que acaba sendo excluído nessa decisão são os que precisam de alta concentração de THC, como pacientes com câncer e esclerose múltipla – e isso inclui crianças. A liberação do CBD apenas, portanto, beneficia de forma limitada um número limitado de pacientes.
A demanda é suficiente, no entanto, se o valor cobrado pelo medicamento for alto, para trazer lucros significativos à indústria. A GW Pharmaceuticals, empresa produtora do Sativex (spray de extrato de THC), está em contato com a Anvisa desde antes das decisões de reclassificação do CBD, segundo Maurício Cândido de Souza, porta-voz da empresa. No ano passado, enquanto a Anvisa postergava ao máximo a tomada de decisão em relação ao CBD, a GW realizava testes clínicos envolvendo um novo medicamento chamado Epidiolex, com altas concentrações de canabidiol purificado. Os testes em crianças com epilepsia refratária têm apresentado bons resultados, mas ainda faltam estudos para que o medicamento chegue ao mercado. Esse medicamento pode não vir, no entanto, com um preço acessível. A importação do Sativex, por exemplo, conforme apurado pelo site Smoke Buddies (smkbd.com), pode custar mais de 30 mil reais, como já acontece em outros países. O preço deve diminuir quando a empresa entrar no mercado brasileiro, mas continuará sendo alto para a realidade da maior parte das famílias brasileiras.
Segundo o médico e pesquisador José Alexandre de Souza Crippa, será papel dos pacientes exigir da justiça o barateamento desses produtos. Portador de patentes de CBD sintético, Crippa defende o uso do canabinoide sintetizado ou purificado. Ele deve anunciar em março seus planos para a produção de um CBD sintético no Brasil, em parceria com a indústria farmacêutica. A questão é: por que os pacientes deveriam aguardar as pesquisas, o lançamento de produtos que podem não funcionar tão bem quanto o produto natural, para depois brigar na justiça para que esses produtos sejam acessíveis a todos quando poderiam plantar variedades de canábis ricas em CBD virtualmente de graça?
Um estudo realizado em Israel, em 2014, por Ruth Gallily e colegas, comparou os efeitos terapêuticos do CBD isolado e a planta Avidekel, que é rica em CBD, mas também contém uma série de outros componentes naturais. A pesquisa constatou que a canábis em sua forma natural é mais eficiente do que o CBD em sua forma isolada no tratamento de doenças inflamatórias. Não faz sentido, portanto, conceder o direito de monopólio de medicamentos a base de canabidiol para empresas que pretendem vende-lo da forma mais lucrativa possível, se isso significa um medicamento menos eficiente do que sua própria matéria-prima.
A reclassificação do CBD, portanto, não é beneficial para a maior parte dos pacientes; favorece empresas que visam o lucro; abre margem para empresas que se aproveitam desse momento de transição e funcionam de maneira duvidosa, colocando em risco pacientes sem muita opção; permite que pacientes sejam “usados” para o interesse particular de alguns; mantém os preços de produtos à base de CBD lá no alto; e impedem famílias e pacientes de plantar a obra-prima de seus tratamentos, favorecendo o monopólio da indústria. O mais preocupante é impressão de que “o problema está resolvido”, amenizando o apelo de ativistas e da mídia em favor de pacientes. O problema está longe de ser resolvido, e a luta pelo acesso ao tratamento com canábis toma novo fôlego e continua.